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Aramis

A noite de Cazuza na dignidade da coragem

Quando Cazuza entrou pela terceira vez no palco do Golden Room, na noite de terça-feira, 25, para receber o troféu que "Brasil" mereceu como música do ano, tirou o turbante - marca registrada de seu visual - e comentou: - Este turbante eu comprei em Nova York. É um turbante palestino que eles usam em conversações de paz. Na guerra, o turbante é vermelho. Hoje eu estou numa noite de paz. Anteriormente, ao receber o troféu de melhor disco na categoria pop/rock ("Ideologia", Polygram), Cazuza havia se referido à importância do trabalho - que o mantém vivo - entremeado de alguns palavrões, mas sem chocar. E na primeira vez em que foi chamado ao palco por Chico Anísio, mestre de cerimônias da noite de entrega do Prêmio Sharp da Música, Cazuza foi aplaudido em pé, por mais de 500 pessoas que superlotavam o Golden Room do Copacabana Palace, conforme a televisão e a imprensa nacional registraram na quarta-feira. Nas três vezes, Cazuza (Agenor de Miranda Araújo Neto, 31 anos) entrou no palco, numa cadeira de rodas, empurrada por Bené, seu enfermeiro-secretário, ao lado da cantora Gal Costa, vestida de branco, e de seus parceiros em "Brasil" - George Israel e Nilo Romeiro. Nas três vezes, Cazuza fez o sinal de "V", com a mão direita, ao voltar ao lugar em que assistiu toda a festa - da qual só saiu 5 minutos antes do encerramento, quando o grande homenageado da noite - Dorival Caymmi, 75 anos a serem completados no próximo dia 30, cantava quatro de suas músicas - na última, "Coqueiro de Itapoã", com o coro emocionante de todos os artistas que participaram do espetáculo - numa integração perfeita e que nos lembrou a ocasião em que, no evento Brasil de Todos os Cantos no auditório Bento Munhoz da Rocha Neto, 10 de maio de 1983, aconteceu um momento semelhante - inesquecível a todos que assistiram. xxx A presença de Cazuza, em doença terminal, na festa de entrega dos 60 troféus aos melhores da música, indicados por um júri formado por 20 nomes nacionais, foi um misto de emoção, nervosismo dramático e mesmo "um momento histórico para a música" - como diria Zuza Homem de Mello, integrante do conselho diretor deste evento. Cazuza falou com ternura e mesmo esperança - emocionando, assim, ainda mais os presentes. A atriz (e cantora bissexta) Marília Pera, que abriu musicalmente a noite cantando "O Que é Que a Baiana Tem?", seríssima e compenetrada, após Cazuza ter recebido o primeiro dos três troféus - leu um seco, duro e vigoroso manifesto contra a revista Veja, que nesta semana dedicou sua reportagem de capa a Cazuza ("Uma vítima da Aids agoniza em praça pública"). O manifesto, com assinatura de dezenas de artistas, intelectuais e outras personalidades, deverá ser publicado domingo em jornais nacionais - mas já na quarta-feira, era assunto de O Globo e outras publicações. Naturalmente, no jantar que se seguiu à festa - servido nos vários salões do glorioso hotel Copacabana Palace - o assunto era o mais discutido, com os indignados pela reportagem publicada pela Veja em maior número daqueles que viam validade na forma com que um tema tão delicado foi tratado. A repórter Angela Abreu - que na entrevista com Cazuza foi acompanhada por Alessandro Porro, chefe da sucursal do Rio - demitiu-se na segunda-feira, logo após ler a entrevista e saber que Cazuza, irritadíssimo, havia sido internado na Clínica São Vicente. Apesar da insuficiência respiratória, provocada pela reação que teve ao ler a Veja, ele descansaria durante toda a terça-feira na casa de seus pais - João Araújo, presidente da Globo/Som Livre e a cantora bissexta Lucinha Araújo (há 7 anos, ela fez um elepê na RCA), para à noite, comparecer na festa promovida pela Sharp. O próprio José Maurício Machline, idealizador e diretor geral do evento - instituído em 1988 (quando a festa de premiação aconteceu no auditório do Hotel Nacional), surpreendeu-se pela decisão de Cazuza, mesmo com seu crítico estado de saúde, comparecer ao evento. Uma noite que, indiretamente, se transformou em mais uma homenagem (e um desagravo em relação à polêmica matéria da Veja) a um ídolo da música jovem, tragicamente condenado à morte pela Aids. O fato, em si dramático, não tirou entretanto o clima festivo da noite - pois o próprio Cazuza, ao falar nas três vezes em que foi ao palco, fez questão de transmitir uma mensagem positiva, de quem enfrenta um momento terrível, com coragem e mesmo esperança. Este foi, em si, o maior significado de uma noite produzida com carinho e competência para homenagear aqueles que foram, no ano que passou, os grandes destaques da nossa música popular - "a mais importante forma cultural do Brasil" como diria o grande idealizador da promoção, José Maurício Machline, ao ser chamado, no final - merecendo justos aplausos de todos os presentes.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
28/04/1989

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