Login do usuário

Aramis

As últimas gravações deixadas por Cazuza

Edições póstumas oferecem sempre riscos. Se o artista deixa trabalhos concluídos, produzidos exatamente como haviam sido idealizados - como foi o caso dos dois magníficos álbuns póstumos de Elizete Cardoso, produzidos por Hermínio Bello de Carvalho e lançados em maio pela Sony Music, os mesmos se constituem em documentos indispensáveis, fechando a carreira de uma artista maior. Entretanto, quando um artista morre em pleno vigor de sua criatividade - como aconteceu há 40 dias com o grande Luiz Gonzaga Júnior - corre-se o risco de, em pouco tempo, as gravadoras pelas quais o artista passou entulharem o mercado de montagens feitas sem o menor critério, buscando apenas o faturamento fácil. Maysa e Elis Regina têm sido vítimas desta política predatória e criminosa em termos do patrimônio artístico. Com Cazuza (Agenor de Miranda Araújo Neto), cuja agonia arrastou-se por mais de um ano, comovendo todo o país, felizmente não está acontecendo este desrespeito. Falecido aos 32 anos, em 7 de julho do ano passado, o compositor-intérprete vítima da AIDS procurou uma sobrevida justamente não deixando de compor e gravar. O álbum duplo "Burguesia", (Polygram, 1989) que já fez em precaríssimas condições de saúde, em sessões registradas com imensas dificuldades, foi um documento emocionante da vontade de um artista, nas condições mais adversas, em continuar a dar o seu recado. Amargo, crítico, desbocado como sempre foi, em sua rimbaudiana vida de poeta maldito, que assumiu todos os riscos e morreu jovem. Cazuza, compreensivelmente, expelia um pessimismo com o país, com a vida em suas canções compostas a partir do momento em que foi confirmada sua doença terminal. Nem por isto, entretanto, deixou de trazer também momentos de beleza - e de uma poesia acre mas contemporânea - e principalmente falando das coisas de sua época e atingindo uma faixa jovem. "Por Aí..." (Polygram, maio/91), produzido pelo seu maior amigo, o jornalista e record-man Ezequiel Neves (associado a Jorge Guimarães), é um disco respeitoso na proporção em que a reunião de faixas registradas e, a princípio, deixadas de lado anteriormente, poderiam oferecer condições de serem editadas. Embora evitando limpar gavetas e utilizar momentos que, por diversas razões de ordem técnica/artística não tinham, realmente, condições de ser comercializadas, o repertório deste álbum póstumo não deixa de ter o sabor de saldo final. Aliás, em declarações à imprensa, tanto os pais do artista - o executivo João Araújo (da Sigla) e sua esposa, Lucinha Araújo (cantora sensível, que chegou a fazer um elepê há dez anos) declararam que este seria, definitivamente, o último registro produzido com material deixado pelo filho querido. Uma atitude bonita, pois Cazuza deve ser lembrado em seus anos de vigor, imagem saudável, dos tempos do Barão Vermelho. Temos exemplos do corrosivo humor de Cazuza em sua parceria com Arnaldo Antunes e Zeba Moreau ("Não há perdão para o chato"), no qual interpreta um sentimento coletivo: Só não há perdão para o chato/Não há perdão O reino dos céus só é do chato/do chato do chato Do otário e do cagão Um canto de amor ao lusitano ("Portuga", parceria com Orlando Morais), romantismos descompromissados hetero ("Paixão", com João Rebouças e "Camila Camila", esta de Thedy Corrêa/Sady Homrich/Carlos Stein) e homossexual ("Hei Rei!", com Frejat) intercala-se uma sofrida homenagem gershwiniana na interpretação do "Sumertime". No final, após um hino ao Japão ("Oriental II"), conclui com um pouco de otimismo ("O Brasil vai ensinar o mundo", com Renato Rockett) em que vaticina que o Brasil vai ensinar ao mundo, a arte de viver sem guerra.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Música
4
23/06/1991

Enviar novo comentário

O conteúdo deste campo é privado não será exibido publicamente.
CAPTCHA
Esta questão é para verificar se você é um humano e para prevenir dos spams automáticos.
Image CAPTCHA
Digite os caracteres que aparecem na imagem.
© 1996-2016. tabloide digital - 35 anos de jornalismo sob a ótica de Aramis Millarch - Todos os direitos reservados.
Desenvolvido por Altermedia.com.br