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Aramis

Vozes e Faces do Holocausto

"... a grande arte de Claude Lanzmann está em fazer falar os lugares, em ressuscitá-los através das vozes e, para além das palavras, exprimir o indizível através de rostos." (Simone de Beauvoir, 1908-1986) A importância de uma obra documental como "Shoah" (Cine Groff, 14 e 19h30) justifica que voltemos a chamar atenção do público para sua importância e lamentar que, num desrespeito a comunidade israelita de Curitiba, a estréia deste filme de características especiais tenha sido feito de forma tão anônima. Há quatro anos que o documentário de Claude Lanzmann vem merecendo especiais atenções em todo o mundo, especialmente pela seriedade com que foi realizado, ao longo de 10 anos de pesquisas, para provar definitivamente ao mundo todo o horror do genocídio contra o povo judeu. Eliel Eisel, 61 anos, prêmio Nobel da Paz - 1986 (foi o único escritor a ganhar esta láurea máxima), em 25 livros sobre o holocausto (inclusive o que deu base ao roteiro da série de televisão americana), em recente artigo no "New York Times" (transcrito no suplemento "Cultura", "O Estado de São Paulo", 1/7/89), denunciando a "onda" de espetáculos - cinematográficos e teatrais - que exploram trivialmente o holocausto, bem como as tentativas neo-nazistas de negar os fatos, destacou "Shoah", ao lado de "Nuit et Brouilard" (1955, de Alain Resnais) e "81st Blow" de Haim Gouri - ambos inéditos no Brasil - como o maior exemplo de honestidade na discussão da questão judaica e o extermínio de 6 milhões de judeus. Wiesel foi um dos sobreviventes de Auschwitz e Buchenwald (onde perdeu os pais e irmãos). Embora tenha na comunidade israelita o seu público mais seguro - e que se tivesse sido motivada em Curitiba, estaria lotando as sessões do Cine Groff - "Shoah" é um filme duro, ácido e amargo para quem mais diretamente sentiu os horrores do nazismo. Pessoas idosas, sensíveis e que trazem cicatrizes de um passado relativamente recente, no qual se cometeu o maior crime contra a humanidade, por certo sofrerão profundamente com as entrevistas que Lanzmann fez com sobreviventes, algozes e testemunhas que buscou em várias partes do mundo. Sem uma única imagem de época, apenas na força das palavras gravadas em sons e imagens, com primeiros planos e closes dos entrevistados, o filme [mostra] tanto horror quanto as mais duras imagens capturadas pelos cinegrafistas dos exércitos aliados que, ao chegarem nos campos de concentração documentaram para a posteridade toda a barbárie cometida pelos nazistas. Imagens que, a partir de 1947, liberadas em documentários e cinejornais chocaram o mundo e cuja autenticidade os neo-nazistas buscam negar. Transformadas em longas-metragens como "Terror e Misérias do III Reich", "Nazismo sem Máscara" ou mesmo aproveitadas dentro de documento-dramas como "Julgamento em Nuremberg" (1961, de Stanley Kramer) (para ficar apenas em alguns exemplos, já que uma filmografia sobre o assunto seria muito extensa), o horror que sofreram milhões de judeus ficou documentado para sempre. Em 1985, Lanzmann, jornalista do "L'Express" - e que 12 anos antes já havia realizado um definitivo documentário sobre Israel ("Por qoui Israel?"), ofereceu com seu "Shoah" uma visão jornalística, no qual apenas a força da palavra - com os entrevistados, sempre que possível filmados nos locais em que a barbárie teve lugar - relatam, de forma emocionada, o que viveram. O filme inicia com imagens bonitas, de um rio serpenteando uma floresta em Chelmno-sobre-o Ner, Polônia. A 80 km de Lodz, no coração de uma região outrora de forte povoamento judeu, Chelmno foi na Polônia a paisagem do primeiro extermínio de judeus pelo gás (iniciou em 7/12/41 e ali 400 mil judeus foram assassinados). Apenas dois sobreviventes: Mordechai Podchlebnik e Simon Srebnik, ambos vivendo hoje em Israel. Srebnik, 52 anos, concordou em voltar ao campo de concentração em que aos 13 anos viu sua família ser assassinada e na qual sobreviveu como "judeu de trabalho". No prólogo (com texto em francês, não traduzido), Lanzmann conta como o garoto conseguiu resistir e, mesmo ferido em 18/1/45, 2 dias antes da chegada das tropas soviéticas, rastejar até um chiqueiro de porcos, onde um camponês polonês o recolheu. Um médico-major russo cuidou dele, salvando-o. Simon abre e praticamente encerra a primeira parte do filme - quando, já envelhecido, reencontra os camponeses da aldeia que o viam, menino, algemas nos pés, trabalhando para os SS alemães. Uma procissão católica moldura estas imagens. Entre estas duas seqüências, passam-se mais de quatro horas de projeção, nas quais ouvem-se dezenas de depoimentos - muitos dos quais retornarão na segunda parte. Lanzmann filmou 550 horas e deste imenso material, com assistência de dois montadores (Ziva Postec/Anna Ruiz) editou nove horas e meia. Procurou, assim, dar o máximo de aproveitamento do que ouviu de pessoas que buscou em uma dezena de países, entrevistando os intérpretes Bárcara Janicka, Francine Kaufmann e Sra. Apfelbaum quando os entrevistados falavam em polonês, hebraico e iídiche. Dentro dos conceitos de documentário, "Shoah" é um desafio: apesar de sua longuíssima duração e conduzir as entrevistas à exaustão não chega, nunca, a ser monótono - mesmo para o espectador que não seja ligado histórica ou racialmente a questão. Exige, entretanto, um conhecimento prévio do que foi o genocídio, a II Guerra Mundial - pois não há didatismo explicativo - mais uma razão pela qual este filme não poderia, jamais, ser apresentado sem uma prévia preparação - de preferência em forma de palestras ou debates (o que foi feito em outras cidades). Trabalhando com diferentes fotógrafos (Dominique Capuis, Jimmy Glasberg, William Lubchansky), muitas vezes em condições adversas, há entretanto uma qualidade perfeita nas imagens. Não existe uma trilha sonora - que retiraria, talvez a dramaticidade da narrativa - e o filme não se fecha em verdades definitivas. Ao contrário expõe fatos, traz inclusive ângulos novos a serem analisados (por exemplo, em algumas entrevistas com camponeses de Chelmo, pode transparecer um certo preconceito contra os judeus), mas é indiscutivelmente verdadeiro. Nas imagens feitas nos locais em que existiram os campos de Auschwitz, Sobibor e Teblinka - os cenários são verdejantes. Como escreveu Simone de Beauvoir (1908-1986), no prefácio "A memória do horror" em "Shoah - Vozes e Faces do Holocausto" (tradução de Maria Lúcia Machado, 268 páginas, 1987, Brasiliense) - "uma das grandes preocupações dos nazistas foi apagar todos os vestígios; mas não puderam abolir todas as memórias e, sob as camuflagens - florestas recentes, grama nova - Claude Lanzmann soube reencontrar as horríveis realidades. Naquele prado verdejante, havia valas afuniladas onde caminhões descarregavam os judeus asfixiados durante o trajeto. Naquele rio tão bonito, jogavam-se as cinzas dos cadáveres, calcinados. Eis aqui as fazendas tranqüilas de onde os camponeses poloneses podiam ouvir e mesmo ver o que se passava nos campos (de concentração). Ali estão as aldeias de belas casas antigas de onde toda a população judia foi deportada". Não é preciso mostrar o explícito (corpos deformados, torturas etc.) para chegar ao horror, e com as vozes - e elas contam, durante todo o filme - o horror nazista se compõe uma sinfonia da verdade histórica, para ser vista e refletida hoje, passados 46, 45 anos daquele período terrível - mas que merece ser (re)visitado e (re)discutido.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
25/10/1989

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