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Aramis

Verdades & Mentiras

"Negócios obscuros requerem lugares obscuros" (David Mamet) Um dos maiores sucessos na Broadway, na temporada 77/78 foi "American Buffalo", peça que trouxe uma consagração ao ator Al Pacino nos palcos. Revelando um novo autor, David Mamet, este texto permanece até hoje inédito no Brasil. Posteriormente, com "Glengarry Glen Ross", Mamet, aos 38 anos, receberia o prêmio Pulitzer em teatro. Outro de seus textos, "Sexual Perversity in Chicago", chegaria ao cinema há três anos (no Brasil, "Acerca Daquela Noite", que passou despercebido). Agora, coincidindo com a descoberta, já um pouco tarde, que se faz do dramaturgo Mamet - com a montagem de "Perversidade Sexual em Chicago", em tradução de Marcos Ribas de Faria, direção de José Wilker (Teatro de Arena, Rio de Janeiro) - chegam também as telas dois filmes dirigidos por Mamet: "As Coisas Mudam" (Things Change), comédia deliciosa que teve uma magra semana no Bristol, há quinze dias e este denso, profundo e inquietante "Jogo de Emoções" (House of Games), que, lamentavelmente, encerra hoje sua carreira no Cinema I (4 sessões... se houver espectadores). Dentro de algum tempo, quando David Mamet se tornar um nome "consumido" - ou seja, conhecido pela mídia - possivelmente os "intelectuais" que agora desprezaram de conhecer seus dois filmes (assim como ignoraram, no ano passado, a versão para a tela de "Sexual Perversity in Chicago") estarão lamentando... É sempre assim! Se não há uma maciça promoção, talentos maiores acabam despercebidos do público. "As Coisas Mudam" (Things Change), que antes mesmo de chegar as telas americanas (março/89) há havia valido premiações aos atores Don Ameche e Joe Mantegna no Festival de Veneza-88 - além da consagração da crítica européia, foi uma deliciosa comédia sobre o envolvimento de um humilde engraxate (Ameche) pela Máfia. Suave, simbólico e mesmo poético, "Things Change" tem o encanto dos filmes que valorizam os sentimentos e os seres humanos - o que proporcionou ao veterano Ameche (79 anos, premiado com o Oscar de melhor coadjuvante por "Coccon" em 1985) criar uma interpretação inesquecível. Se "As Coisas Mudam" foi a oportunidade de Mamet, trabalhando sobre um argumento em colaboração com Shel Silverstein, mostrar o lado tragico-irônico de um envolvimento de um homem comum por uma organização criminosa, em "Jogo de Emoções" - produção anterior (1986) foi um mergulho em águas mais profundas. Poder-se-ia até aproveitar o título do último dos grandes filmes de Orson Welles para identificar este filme com trama das mais bem urdidas: "Verdades e Mentiras". Ou tramas & trapaças. Até que ponto uma mulher independente, profissional (psiquiatra), realizada, autora de um best-seller, a Dra. Margaret Ford (Lindsay Crouse) pode, de repente, num impulso entre o sexo reprimido e uma (aparente) disposição de auxiliar um paciente, Billy Hahn (Steve Goldstein), e se envolver com um charmoso vigarista, Mike (Joe Mantegna) e viver uma perigosa experiência? Mais do que um thrilling psicológico, "House of Games" é uma proposta audaciosa sobre aquilo que é, aparentemente, segurança e estabilidade emocional-afetiva - e a fragilidade com que um status quo pode ser abalado. Não só fisicamente - mas também como personagem - a Dra. Margaret Ford lembra outra doutora (Gena Rowlands) do recente "A Outra" (Another Woman, de Woody Allen). Ambas são mulheres de couraça vigorosa que se deixam abalar por fatores inesperados em sua vida. Embora David Mamet não tenha, obviamente, a mesma profundidade de Woody Allen, consegue construir um filme com excelente ritmo e uma certa dose de suspense - com uma leve pitada da hitchcookiana ("Marnie - Confissões de uma Ladra", 1964), embora numa linguagem que se destina ao público de fino paladar - capaz de absorver um ritmo as vezes lento, outras vezes introspectivo - com entradas e saídas de personagens aparentemente enigmáticos. Apesar da colocação dos personagens em cenários diferentes - e alguns exteriores (rodados em Seattle), Mamet não esconde sua carpintaria teatral - o que explica a verborragia de alguns momentos. O que, entretanto, não prejudica a narrativa, especialmente porque soube escolher uma dupla de intérpretes - Lindsay Crouse (por sinal, sua esposa) e o excelente Joe Mantegna que desenvolvem um jogo perigoso: ela numa (aparente) curiosidade para descobrir um mundo criminoso; ele armando um golpe de trágico final. A psiquiatra e o trapaceiro, verdades & mentiras - segredos de parte a parte, numa trama que envolve-os (e também ao espectador) de uma forma fascinante para quem aprecia a magia de um gênero de filmes que interioriza sentimentos - mas provoca explosões finais. Lindsay Crouse - que carrega a grande personagem do filme - veio do teatro e tem aparecido em alguns papéis menores no cinema. Em "O Veredito" (1982, de Sidney Lumet) era uma discreta enfermeira mas por sua atuação em "Um Lugar no Coração", ganhou em 1985 uma indicação para o Oscar de melhor atriz (que foi para Dame Peggy Aschroft, por "Passagem para a Índia"). Dedicando-se mais ao teatro nova-iorquino por uma recente interpretação do Ophelia, em "Hamlet" (foi indicada pelo "The New York Times" como uma das melhores atrizes contemporâneas), Lindsay tem feito poucos filmes - e por isto é ainda um nome que não atrai público no Brasil. Igualmente Joe Mantegna não foi "descoberto", embora esteja entre os mais promissores atores americanos desta década. Por sua atuação em "Glengarry Glen Ross", peça do mesmo Mamet, recebeu o Tony (o Oscar do teatro) em 1984. Apareceu em papéis pequenos ("Posições Comprometedoras", "Um Dia a Casa Cai", "Três Amigos"), mas em "Sob Suspeita" (1986, de Peter Yats), teve um maior destaque. Como fazia John Cassavetes (1929-1989), Mamet também gosta de trabalhar com os mesmos artistas e por isto incluiu no elenco deste "House of Games", Mike Nussbaum, também visto em "As Coisas Mudam", num personagem marcante (o trapaceiro Joey). Quem se interessa por cinema up to date deve assistir "Jogo de Emoções" (que não tem cópia em vídeo), que confirma o talento do dramaturgo e cineasta David Mamet. Um novo John Cassavetes, por que não? P.S.: outra prova do talento de David Mamet: foi o roteirista de "Os Intocáveis" (1987, de Brian de Palma). Um dos pontos altos que fez deste um dos melhores filmes da década. LEGENDA FOTO - Joe Mantegna e Lindsay Crouse em "Jogo de Emoções": um thrilling psicológico, para ver e pensar. Hoje, no último dia de exibição no Cinema I).
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
13/09/1989

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