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Aramis

Uma saga de amizade estradeira

A primeira - e maior - validade de "Jorge, um brasileiro" (cines Palace Itália e Condor, 5 sessões) é voltar-se a uma temática popular, de personagens simples, estabelecendo - ou buscando ao menos - aquele vínculo necessário, capaz de ampliar as platéias e que, infelizmente, raras vezes é alcançado. Oswaldo França Júnior, 52 anos, oficial cassado da Aeronáutica (viveu episódios no Rio Grande do Sul que dariam um excelente roteiro cinematográfico), escritor que vem construindo uma obra séria e respeitada, em 1967, ao publicar "Jorge, um brasileiro" fazia um retrato sobre o trabalho dos homens que cruzam as estradas do Brasil - mas aprofundava suas reflexões em torno da amizade - na relação do personagem-título com seu antigo colega dos tempos ainda mais difíceis, na construção da Transamazônica, e que conseguiu transformar-se em empresário do setor de transporte de carga. Justamente esta profundidade sobre o trabalho, o companheirismo e a amizade é que foi tentado passar no roteiro desenvolvido por Alcione Araújo. Em entrevista oficial, explicando seu trabalho, Alcione negou "compromisso de narrativa" do filme com o livro, admitindo que o núcleo central da ação dramática é a obra de França, "mas o romance tem uma característica da época em que foi escrito, uma certa amargura dos anos 60. Amargura de um momento político, de uma situação brasileira que não é de hoje. Nesse sentido o filme é diferente. É atual, anos 80". Com uma ação que se passava nas dificuldades de estradas do Interior há 20 anos (considerando o lançamento do livro, infelizmente não há defasagem. Apesar dos anos do milagre brasileiro e da política eminentemente rodoviária do governo Médici, as estradas continuam hoje tão ruins como há três décadas - embora tenham surgido novos caminhos pavimentados, ironicamente porém com problemas de conservação e nos quais os índices de acidentes aumentam cada vez mais. O comboio de cinco carretas, carregadas com uma carga de milho, entre Governador Valadares a Belo Horizonte, para uma política e demagógica inauguração de uma obra do governo, é o leit motiv para a ação. As chuvas provocaram quedas de barreiras na rodovia principal e para atender o pedido do amigo Mário (Dean Stockwell, numa pálida atuação, prejudicada pela dublagem dessincronizada, feita por Odilon Wagner), o caminhoneiro Jorge (Carlos Alberto Ricelli, procurando dar o melhor de si num personagem de amplas possibilidades), lidera um grupo de cinco motoristas, com diferentes personalidades, enfrentando problemas de caminhos improvisados. O filme começa lento, artificial mas engrena, finalmente, a partir do início da viagem. Para isto, colaborou o ritmo mais intenso da ação, uma produção cuidadosa e, especialmente, a correta fotografia de Antônio Meliante, que sendo também diretor (tem vários filmes) procurou desenvolver imagens marcantes, buscando ângulos captando os amplos cenários exteriores. Neste aspecto, "Jorge, um brasileiro" é bem cuidado, assim como o experiente diretor de arte, Clóvis Bueno, soube equilibrar os cenários secos, próprios do ambiente em que a ação se passa. Infelizmente, no desenvolvimento dos personagens faltou aprofundamento. Jorge e Mário ainda ganham alguma solidez, assim como os caminhoneiros - o rebelde Fefeu (Antônio Grassi, a melhor presença do elenco, numa interpretação excelente), o velho Oliveira (Jackson de Souza), com as tintas dramáticas mais carregadas; o jovem Toledo (Paulo Castelli) e o negro Theo (Waldir Onofre, mal aproveitado). Cada um destes personagens constitui, em si, um núcleo dramático básico. Mas são os personagens femininos os que mais sofrem: a enfermeira Sandra (Glória Pires), noiva de Jorge, não consegue passar da apatia, mas piores são os personagens Fernanda (Denise Dummont), como a a garota da lanchonete; e Helena (Imara Reis), a esposa de Mário. Fernanda é tola, artificial, com uma presença até irritante, enquanto que Imara Reis representa uma burguesa frustrada, muito mais para o curta "Obscenidades" (baseado em conto de Ignácio de Loyola, que fez há dois anos, premiado em Gramado), do que uma mulher bela mas abandonada sexualmente pelo marido - e que acaba seduzindo o seu amigo. Thiago, irritado com as críticas que o filme recebeu em relação aos personagens femininos, explicou que procurou destacar os "personagens machos", pela própria característica da história - o que, entretanto não justifica os resultados. Mineiro, 45 anos, Thiago tem se voltado a temas literários em sua irregular carreira, adaptando textos de Guimarães Rosa ("Sagarana - O duelo", de Guimarães Rosa), "Soledade" (de José Américo de Almeida) e mesmo tendo partido para uma caótica superprodução sobre "A batalha de Guararapes". Após uma aventura sobre os meios do jogo do bicho no Rio de Janeiro ("Águia na cabeça", 1986), Thiago, com o apoio entusiástico de sua esposa e produtora executiva, a também mineira Gláucia Camargos, conseguiu, em três anos, realizar "Jorge, um brasileiro". A Volvo colaborou com a cessão dos veículos pesados, a participação do americano Dean Stockwell, 53 anos, 44 de cinema (estreou criança, no musical "Marujos do amor", 45, de George Sidney) - hoje um ator cultuado ("Veludo Azul", "Paris, Texas" etc.), pode ajudar a abrir as portas internacionais para o filme - única forma de recuperar os US$ 700 mil investidos (por melhor que seja a sua carreira no Brasil, dificilmente aqui se pagará, infelizmente...). Com um road movie, gênero que tem ampla filmografia (sobre experiências anteriores feitas no cinema brasileiro, dedicamos matéria aqui mesmo no ALMANAQUE, na edição de 5/2/89), "Jorge, um brasileiro" poderia tentar ser uma espécie de "Salário do medo", 1953, o clássico filme de Henri-Georges Couzot (1907-1977), também uma saga de caminhoneiros, na qual dois rudes motoristas (Yves Montand e Charles Vanel, em antológicas representações) conduzem caminhões por estradas dificílimas num país latino-americano, transportando nitroglicerina. "Le salarie de la peur" ficou como um clássico, pelo envolvimento dramático, suspense e linguagem empregada - além de um irônico final. "Jorge, um brasileiro", obviamente, não teria pretensões de chegar a tanto - nem mesmo a uma visão americana do trabalho dos caminhoneiros, como Raoul Walsh (1892-1980) realizou há 50 anos ("Dentro da noite/The drive by night", com Humphrey Bogart e George Raft, que em versão colorizada foi reprisado pela Globo há seis semanas), mas vale como uma carga compacta para fazer com que o nosso cinema volte-se para assuntos bem brasileiros. Como o próprio herói (ou anti-herói) de Osvaldo França Júnior, que afinal, após a decepção sofrida com o amigo Mário, deixa ao espectador a última interpretação sobre os seus sonhos e ilusões. LEGENDA FOTO - Paulo Thiago, no centro, dirigindo os atores Dean Stockwell (à esquerda) e Carlos Alberto Ricelli em "Jorge, um brasileiro", em exibição nos cines Condor e Palace Itália.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
07/03/1989

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