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Aramis

A triste ópera da cultura que prejudicou um maestro

O idealismo e a vontade de realizar um grande espetáculo custou caro a um maestro de Curitiba: prejuízos de Cr$ 130 milhões, a perda de sua casa de praia, dois telefones, seis processos judiciais, penhora de móveis e objetos pessoais e aborrecimentos que se estendem há dois anos. Tudo porque houve boa fé, confiança na Secretaria de Cultura e Esportes (sic) e, principalmente, a disposição de montar uma ópera no Teatro Guaíra. Uma história assustadora em termos de desrespeito a uma pessoa humana, falta de sensibilidade do governo José Richa para com artistas bem intencionados e que apenas comprova, mais uma vez, o descalabro que se instalou na área cultural do Paraná a partir de março de 1983. xxx Aldo Hasse, catarinense de Capinzal, 45 anos, há 27 anos em Curitiba, com licenciatura em música desde 1975, é o regente-fundador do Madrigal Pró-Arte. A partir de 1978, iniciou um idealístico trabalho reunindo os apreciadores do bel-canto. Modestamente, sem maiores pretensões, o coral evoluiu e dentro de uma natural disposição de seus integrantes em partirem para espetáculos completos, a primeira intenção foi uma montagem de "Lucia di Lammermoor", escrita em 1835 por Gaetano Donizetti (1787-1848). A produção chegou a ser iniciada quando o então ministro Ney Braga, da Educação e Cultura, acenou, com apoio federal. Entretanto, o então governador Jaime Canet Jr. (homem que jamais teve qualquer sensibilidade para projetos culturais) vetou a contra-partida: o Estado do Paraná não iria investir nada no projeto. Ao menos, a negativa foi franca e, mesmo frustrados, Aldo e seus companheiros retornaram a um trabalho modesto - cantando em casamentos, concertos em igrejas etc. Mas a encenação de uma ópera não deixava de ser um sonho acalentado. xxx Em março de 1983 mudou o governo. Muitos planos e promessas. O Madrigal Pró-Arte foi contatado através da Secretaria da Cultura e Esportes e idealizou-se uma grande montagem: a ópera "La Traviatta", de Giuseppe Verdi (1813-1901). A produção foi iniciada e Aldo estava entusiasmado, certo de que se tratando de um projeto desenvolvido em colaboração com a Secretaria da Cultura e Esportes, não faltariam condições para sua realização. Ingenuamente (e como pertence àquela categoria de homens honestos que ainda acreditam na palavra das autoridades), Aldo não exigiu contratos. Simplesmente, mergulhou no que lhe cabia fazer: a direção artística da ópera de Verdi que desde que estreou no Teatro La Fenice, em Veneza, a 5 de março de 1853, é considerada uma das obras-primas do mundo lírico. Durante os ensaios, Aldo começou a sentir problemas com o tenor Ivo Lessa, no principal personagem (Alfredo Germont). Um mês antes da estréia, mesmo a contragosto mas preocupado com o rendimento do cantor, achou conveniente substituí-lo no papel. Coincidência ou não, uma semana depois começaram as dificuldades: a Secretaria da Cultura, que até então havia demonstrado apoio e ajuda para a montagem, alegou falta de recursos, corte de verbas e procurou pressioná-lo para suspender a temporada. Aldo recusou-se. Afinal, a produção estava a caminho e inclusive artistas argentinos, do Colon de Buenos Aires - já haviam deixado de atender outros compromissos internacionais para virem a Curitiba. No mínimo, exigiriam altas indenizações por quebra de contrato. Preocupado, evidentemente, mas animado por uma promessa de apoio do deputado Ervin Bonkoski - a quem transmitiu a situação - Aldo decidiu fazer a estréia na data marcada. Para tanto, assumiu compromissos que foram desde a compra de garrafas de água mineral na cantina do Guaíra até os pesados encargos de transporte aéreo e hospedagem no Hotel Mabu dos solistas contratados para a temporada. Voltado basicamente com o acabamento da produção, Aldo foi assinando compromissos, esperançoso de que havendo o sinal verde oficial - e a própria Fundação Teatro Guaíra participando diretamente em sua infra-estrutura - isto significava apoio e subvenção a eventuais prejuízos. A estréia aconteceu em 23 de setembro de 1983, com um público de 979 espectadores que subiu para 1.632 na segunda récita (17/9) e tendo ainda mais duas apresentações com 2.528 espectadores. A bilheteria foi de Cr$ 47.265.306, mas ao se fazer o balanço constatou-se um prejuízo de 9 milhões - que teve que ser assumido pelo Madrigal Pró-Arte. Animado, entretanto, pelos aplausos, elogios e palavras de estímulo (além de uma promessa de que numa segunda temporada haveria uma participação mais efetiva do governo do Estado) o Madrigal voltou a apresentar "La Traviatta" em mais 5 récitas, entre 23 de março a 1º de abril de 1984, com 4.642 espectadores que deixaram nas bilheterias Cr$ 51.000.000. Entretanto, os prejuízos só subiram, atingindo, então, Cr$ 31.392.919, assumidos por Aldo Hasse. xxx Entretanto, desde o semestre passado, tramitava um processo solicitando oficialmente auxílio financeiro para a produção. Por uma incrível coincidência, a partir do momento em que o tenor Ivo Lessa deixou de ser o principal solista da montagem, o processo passou a sofrer estranhos obstáculos. Outra coincidência: a sra. Tatiana, esposa de Ivo Lessa (funcionário da Copel, hoje chefe da assessoria técnica da Casa Civil do governo do Estado) - era, na época, uma das mais influentes assessoras do gabinete do secretário da Cultura. Nestes últimos 22 meses, inúmeras vezes Aldo tentou sensibilizar as autoridades para conseguir a mínima ajuda que lhe possibilitasse cobrir os prejuízos. Ao contrário, só ouviu evasivas, desculpas e alegações. Paralelamente, também outra estranha coincidência: Aldo Hasse sofreu novos prejuízos, perdendo os cargos de regente da orquestra de Ponta Grossa e do coral da Universidade Católica. Entretanto, processos de cobrança judicial, penhora de bens (todos os móveis de sua residência), foi obrigado a se desfazer por apenas Cr$ 25 milhões de sua casa de praia em Itapoã e a venda de dois aparelhos telefônicos para pagar as contas junto à Varig-Cruzeiro, primeiras empresas a lhe acionarem judicialmente. Ironicamente, comenta o maestro: - "Nunca em minha vida entrei num avião para qualquer viagem e justamente tive que me desfazer do patrimônio familiar para pagar passagens gastas com artistas numa produção artística." Dentro de sua disposição de saldar os compromissos, mas dentro do apertado orçamento (vive com os salários de regente de corais em Curitiba e Francisco Beltrão, para onde viaja semanalmente), Aldo vem pagando as contas - que vão desde o material empregado nos cenários, despesas com profissionais da maquilagem, alfaiates e, especialmente os músicos contratados para a orquestra - que somaram em reclamações trabalhistas nada menos que Cr$ 16.892.000. A dívida de Cr$ 31.392.917 em abril de 1984 subiu em menos de dois anos para mais de Cr$ 130 milhões. Alguns acordos foram tentados e ainda agora está sendo negociada a despesa com o Hotel Mabu (valores de Cr$ 3.273.013, em abril/84). Aldo não nega os compromissos assumidos e, dentro de sua honestidade e integridade, quer saldá-los até o último centavo, apesar dos inúmeros sacrifícios e problemas pessoais que isto trouxe a sua família - à esposa, a cantora lírica Ivani, e dois filhos - Ivan, 19 anos e Mozart, 10, estudantes de piano e violino, respectivamente. Aldo reconhece a sua ingenuidade ao assumir, pessoalmente, compromissos que deveriam ter o aval oficial - "e maior ingenuidade ainda em confiar na participação do Estado numa produção que mereceria ter o auxílio oficial". A Secretaria da Cultura e Esportes, em termos oficiais, tranqüilamente lava as mãos neste caso, alegando que nunca assinou qualquer compromisso com o Madrigal Pró-Arte e os riscos foram exclusivos do maestro Hasse. Mas não deixa de ser chocante que um governo que se diz humano e participativo, que demagogicamente busca dividendos na área cultural e criou inclusive uma sinfônica (que aliás, já começa a sofrer problemas intestinais e corre o risco de entrar em crise) se recuse a auxiliar um artista honesto, levado à falência pessoal porque acreditou que o governo de José Richa tinha alguma seriedade cultural.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
13
04/02/1986

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