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Aramis

Terra do Sonho Distante (II)

Haskel Wexler, 55 anos, respeitado, antes de tudo, como um dos mestres de fotografia no cinema americano, realizou há nove anos, um filme que se transformou num clássico de g6enero documentário: "Dias de Fogo" ( Medium Cool, 1969). Analisando os incidentes ocorridos em Chicago, durante a convenção do Partido Democrata para a indicação do candidato a presidência (1967), Wexler mostrou o quanto pode fazer uma câmera cinematográfica, se aliada a lucidez interpretativa. Mestre na utilização dos recursos do cinema, num sentido realista sem filtros diluitivos e piruetas cromáticas, como faz, por exemplo, um Claude Leloch, Wexler consegue exprimir em cada fotograma, em cada seqüência, o mesmo que o mais perfeito escritor consegue com palavras ( não foi sem razão que, em 1966, Wexler recebeu o Oscar pela sua fotografia de "Quem tem Medo de Virgínia Woolf?"). Um filme com fotografia de Wexler já é, antes de tudo, uma garantia mínima de qualidade. E unindo toda sua experiência de 20 anos de cinema ("Stakeout on Dope Street", 58, foi seu primeiro filme) a história de um personagem real, que por certo mereceu sua admiração, como o compositor e cantor Woody (Woodrow Wilson) Guthrie (1912-1967) fizeram com que, ao ser convidado por Hal Ashby para fazer a fotografia de "Esta Terra é Minha Terra" (Cinema 1, até amanhã, sessões às 14h30min e 20h30min) realizasse talvez o mais perfeito trabalho de sua carreira. A fotografia de "Bound for Glory", que deu a Wexler seu segundo Oscar, é suave, como a beleza de nuvens brancas num céu azul de verão. Mas é também participante, integrada aquilo que Ashby buscou mostrar. A aridez da pequena Pampa, no Texas, o longo caminho percorrido por Guthrie e tantos outros milhões de americanos nos anos 30, durante a grande depressão, na busca da terra do sonho distante - a Califórnia, a miséria, a violência, a exploração dos "bóias-frias" pelos proprietários rurais da época, teve nas imagens coloridas de Wexler uma pintura forte, realista - mas também poética. Pode-se, sem exagero, comparar a fotografia de "Esta Terra é Minha Terra" ao trabalho de grandes mestres da pintura, pois ela é poética e penetrante e atua como uma navalhada na sensibilidade do espectador. Hal Ashby, diretor que através de uma pequena, mas já marcante, filmografia, vem demonstrando inquietação crítica, colocando, com coragem, o dedo em certas feridas - o preconceito racial ("Amor Sem Barreiras/ The Landlord", 1970), a marginalização da velhice ("Ensine-nos a Viver/Harold and Maud", 1972) e a hipocrisia social ("Shampoo", 1976), consegue em "Bound For Glory" atingir o ponto maior, até agora, em sua carreira. Sua direção segura, objetiva, faz com que o espectador não se canse com a longa-metragem do filme, cujas imagens fluem naturalmente, com balanço, em seqüências bem cronometradas (e nisto conta, é bom lembrar, a excelente fotografia de Wexler). Uma narrativa em que o documental, o social e o musical, se integram ao panorâmico retrato de uma época (os anos 30, a depressão econômica nos EUA, os problemas sindicais), com a participação de artistas como Guthrie e seu companheiro, o cantor Ozark (excelente interpretação de Ronny Cox), na conscientização dos "bóias-frias" da necessidade de formarem sindicatos, como fórmula de defesa de seus direitos. Aparentemente, "Esta Terra é a Terra" poderia ser apenas um filme de interesse aos que acompanham a música americana, em suas raízes do chamado "Country & Western" embora nunca os discos de Guthrie tenham sido editados no Brasil). Entretanto, pelo sentido de participação social e política de sua vida, sua lucidez, seu desprendimento em favor dos humildes, da chamada "outra América", fazem com que este filme interesse a todos que buscam no cinema uma responsabilidade, um veículo democrático de exaltação de valores (e direitos) humanos, mostrando o poder do pensamento e da arte - com as canções de Guthrie tão poderosas - e ameaçadoras, a muitos - como os fuzis e os cassetetes que o atingiram, tantas vezes. Nos Estados Unidos, afora a autobiografia de Woody Guthrie, escrita em 1943 - em que Ashby, e Robert Getchell, basearam-se para fazer o roteiro enxuto do filme, pode-se encontrar, em qualquer livraria, meia dúzia de outros volumes dedicados a sua obra. Ao lado do álbum duplo, com a trilha sonora do filme (que ainda não foi - e talvez nem seja - lançado no Brasil) uma dezena de lps, com suas canções, as quais, muitas vezes, não são fáceis de serem compreendidas pelo ouvinte estrangeiro, desacostumado com seu sotaque texano, expressões idiomáticas e, principalmente, deficiências técnicas, pois grande parte de sua obra musical foi gravada em pequenos estúdios, sem os recursos de que hoje a indústria fonográfica dispõe. (A partir de 1954, gravemente enfermo, Guthrie afastou-se da vida artística, vindo a falecer em 5 de outubro de 1967). Mas os americanos sempre entenderam suas canções, tornando-o um dos nomes mais admirados. O maestro Leonard Rosemann, de quem basta dizer que foi o autor da trilha sonora de "Vidas Amargas" (East of Eden, 54, de Elia Kazan), responsável pela montagem da trilha sonora soube utilizar, com muita felicidade as canções de Guthrie, somadas a meia dúzia de outras baladas da mesma época (anos 30). Na voz de David Carradine, perfeito como Guthrie, as canções integram-se a ação, não ficando, como acontece, em tantos musicais, soltas, artificiais. Ao contrário, as quase 30 canções que se ouve durante os 130 minutos do filme, complementam as imagens de Wexler, pois elas tem o gosto da terra, do povo, das pessoas que buscam o direito de serem felizes. Afora Carradine, todo o elenco é formado por intérpretes praticamente desconhecidos (no Brasil), mas que dão aos seus personagens um grande vigor. Na verdade, Woody Guthrie teve outros filhos - no filme, aparecem apenas duas meninas. O mais novo deles, Arlo, nascido em 1947, foi lançado por Arthur Penn no papel central de "Deixem-nos Viver" (Alice's Restaurant, 1968) - no qual, numa rápida seqüência, havia uma referência a Woody, inclusive focalizando-o já enfermo, na cama, cenas obviamente filmadas anteriormente. "Alice's Restaurant" foi pouco compreendido na época, permanecendo mesmo ignorado por muitos na obra do cineasta de "Bonnie & Clyde". Mas, se reprisado hoje, poderia ser reavaliado com maior lucidez, principalmente após se conhecer melhor a personalidade do velho Guthrie, neste "Esta Terra é Minha Terra", um filme que dignifica o cinema, ao mostrar exemplos de homens que acreditam nos valores maiores do que o sucesso financeiro, o poder momentâneo, - preferindo um idealístico esforço no sentido de que muitos entendam suas idéias e, sobretudo, descubram seus próprios valores e virtudes. Esta é a grande lição que Guthrie nos deixou e que não devemos esquecer.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
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21/02/1978

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