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Aramis

A ternura da infância nas imagens perfeitas

Se ainda não existe, algum estudioso deve providenciar urgentemente um livro que examine as relações do cinema com as crianças. Afinal, ao longo dos 100 anos de cinematografia a infância tem, de todas as formas, estabelecido uma presença em centenas de obras cinematográficas - das mais comercialmente exploradoras das emoções baratas até momentos de profunda reflexão. "Minha Vida de Cachorro" (Cine Bristol, 5 sessões, até amanhã em exibição) é não só uma das mais suaves aproximações do universo lúdico, filosófico e nostálgico da infância, como uma obra reflexão que conquista o espectador com a mínima sensibilidade. Não é sem razão que desde 1985 - ano de sua produção - vem acumulando premiações e extraordinário êxito de público (em Nova York, permaneceu 15 meses em exibição). Lançado agora em Curitiba, por coincidência na mesma semana em que outra produção escandinava, "A Festa de Babette" também entrou em cartaz (Cinema I) - o que possibilita que o espectador tenha uma visão do excelente cinema que se faz naqueles países, "Mitt Liv Som Hund" é um filme-encantamento, cuja emoção (que já pode ser vista também em vídeo, lançamento da Globo Vídeo) ganha, na tela ampla, maior comunicação. Sexto longa-metragem do sueco Lasse Halstrom (cujos filmes anteriores, naturalmente, são inéditos no Brasil), "Minha Vida de Cachorro", foi baseado no livro autobiográfico de Reidar Johnson, publicado na Suécia em 1983, com uma história simples: lembranças do pequeno Ingemar Johansson, 11 anos, que vive numa pequena cidade sueca com seu irmão, Erik (Manfred Serner) e a mãe (Anki Riden), fotógrafa e intelectual, em doença terminal. O agravamento da doença da mãe - e a impossibilidade dela atender os filhos - leva o pequeno Ingemar a uma aldeia, para passar um verão com o tio (Tomas Von Bromssen), fanático por futebol, que o encaixa no time local. Em pouco tempo relaciona-se com a comunidade, especialmente a menina Saga (Melinda Kinneman), apaixonada por futebol e boxe e que procura disfarçar seus seios para poder continua a praticar estes esportes com os meninos. Personagens extremamente simpáticos - que parecem decalcados de um "Amarcord" felliniano, contribuem para o encanto (e o suave humor) do filme: assim o velho sr. Arvidsson, entrevado numa cama, mas que se delicia ouvindo o pequeno Ingemar ler revistas com anúncios de peças íntimas, enquanto esbraveja contra o ruído provocado pelo carpinteiro da aldeia em seu trabalho de fechar goteiras nos tetos das casas; a bela loura Berit (Ingemarie Carisson), colega de seu tio, na fábrica de vidros da região e que concorda em posar nua para um escultor da cidade e seus amigos - todos formando um microuniverso de fácil empatia. O roteiro desenvolvido pelo diretor Lasse em colaboração com o autor do romance original, valoriza os pequenos incidentes e, com rara felicidade, extrapola para o lado filosófico do pequeno Ingemar, em suas considerações nos quais faz o paralelismo do que "poderia ser pior", lembrando que a cadela Laika havia sido lançada num sputnik pelos russos e morrido de fome após ficar cinco meses no espaço. O filme conquista o público pelos personagens e, em especial o extraordinário do pequeno Anton Grianzelius, como Ingemar - fio-condutor da narrativa. Sua expressão facial, a sinceridade que passa desde a primeira seqüência, alternando momentos da terna e natural peraltice infantil com o sofrimento da criança distante do pai (que, diz ele numa seqüência, encontra-se no Equador, vendendo bananas) e sofrendo a dupla dor - (a perda de sua mãe e de sua cachorra Sicharm) são elementos que passam ao público a imagem do universal no pequeno e local - com a aldeia lírica em que transcorre a história. Como observou Anna Maria Dell'Orso ("Times on Sunday", maio/87), a câmara viaja pela Via Láctea enquanto Ingmar faz suas comparações e nós também construímos metáforas para as tragédias do menino. Seus sentimentos nos importam porque eles parecem falar sobre a humanidade - e isto é que torna, justamente, um filme especial, que consegue aquilo que seu realizador pretendeu: contar a história de um aprendizado de vida. Sem pieguice ou melodrama - embora haja a presença da morte (a mãe, em doença terminal) e do infortúnio - "Minha Vida de Cachorro" (o correto seria "Minha vida como cachorro") tem um clima de alto astral - que faz o espectador (ou vídeo-espectador, se preferir assisti-lo na telinha) acompanhar as imagens com um sorriso permanente, não a gargalhada idiota - mas a emoção de viajar ao seu próprio universo. Afinal, numa pequena aldeia da Suécia como Afors, (onde o filme foi rodado) ou qualquer cidade ou aldeia em qualquer parte do mundo, os sentimentos da infância são os mesmos. A ação ambientada há 30 anos passados, os códigos de informação das crianças - universais, enquanto sentimentos - fazem com que "Minha vida de cachorro" envolva e cative numa atmosfera bem cuidada, para o qual a excelente fotografia de Jorge Person/Rolf Lindstrom contribui de uma maneira extraordinária, enquanto a música de Bjorn Isfalt, suave, lírica, completa todo o clima de emoção. Exibida na mostra Melhores do Mundo, paralela ao último FestRio (novembro/88), "Minha Vida de Cachorro" entusiasmou os críticos e espectadores - repetindo-se, aliás, o que vem acontecendo há três anos. É difícil imaginar uma obra, tratando da infância, do desabrochar da vida, mais belo do que esta produção sueca - mas que, em Curitiba, terá sua temporada encerrada amanhã - confirmando-se, mais uma vez, a falta de interesse do público, Felizmente há cópias em vídeo, que mesmo reduzindo (e muito) a qualidade da fotografia original, não deixa de ser uma opção para quem não for ao cinema. LEGENDA FOTO - Ingemar (Anton Gloanzelius), o irmão Erik (Manfred Serner) e a mãe (Anki Linden) em "Minha Vida de Cachorro": um filme emotivo e encantador, em exibição no Bristol.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
18/04/1989

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