Login do usuário

Aramis

Suave sonata de uma admirável velha Dama

O jornalista Wilson Buenos, 30 anos, que retorna à imprensa de Curitiba após uma ausência de 10 anos - período em que atuou na "Tribuna da Imprensa", na coordenação de produção do mobral e em várias outras publicações nacionais, é um dos personagens de "Sonata Perdida" de Maria Helena Cardoso (Editora Nova Fronteira, 272 páginas, Cr$ 180,00), lançado há apenas 10 dias e que ainda nem chegou às livrarias da cidade. Temos aqui a simbiose do romance com as memórias desta mulher, das mais admiradas da intelectualidade carioca, autor de um clássico intitulado "Por Onde Andou Meu Coração?", título aliás que - nem ela própria disto sabe - inspirou a Paulinho da Viola (Paulo César Baptista Faria, 37 anos), um de seus mais belos sambas, "Foi um rio que passou em minha vida" (conforme depoimento que ele nos prestou, há algum tempo). Wilson Bueno, como dezenas de outros jovens jornalistas, artistas, escritores - realizados ou frustados, priva da amizade de Lelena, como os mais íntimos a chamam - e assim, não lhe foi surpresa ao se encontrar nas páginas 172/3 deste livro onde a autora misturou tipos verdadeiros que formaram personagens mais reais ainda Maria Helena Cardoso, 76 anos - completos em 24 de maio último - é um caso raro de vocação só despertada no outono da vida para as letras-razão aliás porque deu a este seu novo livro o subtítulo de "Anotações de uma velha digna". Se até aos 63 anos nunca pensou em literatura, preocupou-se, sempre, com o que ela considera "o oficio de viver". Convivendo sempre, com o numeroso grupo de amigos de Lúcio Cardoso (1913-1968), seu irmão ("Crônica da Casa Assassinada", "Dias Perdidos", "O Viajante" etc), sua paixão entretanto, sempre foi a música: os românticos, principalmente. Um amor visceral, apaixonado, mesmo, pela música, desde os longínquos anos em que, juntamente com o então recém-chegado provinciano (de Juiz de Fora, MG), Murilo Mendes catava, no dial de um velho rádio, alguma emissora que tocasse Schubertz, Schuman, Brahms - suas velhas e nunca abandonadas admirações. Amiga e companheira constante do irmão Lúcio ate sua morte, principalmente no período da doença (1962/68), em que o romancista, vítima de um derrame, se viu inteiramente paralisado - fala, coordenação etc., "emparedado em vida", e mesmo assim o poder criativo dele não cessou e com a mão esquerda deixou exemplos admiráveis de resistência construindo uma obra plástica até hoje pouco ou parcamente avaliada, em toda sua devida dimensão. Aliás, Alair Gomes, que esteve recentemente em Curitiba, publicou no Suplemento Literário da "Tribuna da Imprensa", no período em que Wilson Bueno era o seu editor, um ensaio sobre a obra pictórica de Lúcio. Só aos 63 anos, por insistência de vários amigos, inclusive do próprio irmão, então doente, Walmir Ayala, Otávio de Faria, Maria Alice Barroso, Marcos Konder Reis, entre outros, Maria Helena resolveu publicar - com muita e sincera e relutância - os papéis que como ela própria clássica "estavam no baú, coisas minhas, memórias de Minas Gerais", de uma família provinciana cuja saga começa no interior (Curvelo), passa por Belo Horizonte e termina no Rio, onde a família acaba se instalando. Da família: Adauto Lúcio Cardoso (1904-1973), célebre político da UDN, ex-ministro do SupremoTribunal Federal e que revelou, período crítico de 1968, uma notável coragem e independência - tomando posições das mais notáveis na presidência da Câmara dos Deputados. O livro de estréia da Maria Helena Cardoso, "Por Onde Andou Meu Coração?" foi um imenso sucesso: mereceu de Carlos Drumond uma crônica inteira, com rasgados elogios a Lelena, no "Jornal do Brasil". Oto Lara Rezende chegou a considerá-lo "melhor escritor que o irmão", elogio que até hoje ela não perdoou, tendo mesmo resfriado suas relações com Oto por causa deste episódio. Juscelino Kubitschek tinha este livro em sua cabeceira e Clarice Lispector (1925-1977), outra de suas grandes amizades, a consideração "a mais fina escritora brasileira". Pedro Nava, médico, memorialista, personagem dos mais admirados da literatura e vida intelectual brasileira, também nunca deixou de render-lhe homenagens como "memorialistas", antes mesmo dele próprio se tornar conhecido a partir de "Baú de Ossos", como uma grande memorialista. De 2 anos depois, em 1973, Maria Helena lançou "Viva-Vida", mistura de diário e recomendação biográfica dos tempos de Lúcio Cardoso, que além de escritor e pintor, foi também quase cineasta, tendo deixado incompleto um filme, "A mulher de longe" (1950), mas dado ao seu amigo, Paulo Cesar Sarraceni, o argumento daquele que muitos consideram o seu melhor filme: "Porto das Caixas" (1963). Agora, Lelena reaparece com seu terceiro livro - "Sonata Perdida", onde a memória se mistura à ficção, mas que na verdade são os mesmos: o de seu dia a dia, os seus amigos mais caros, o mundo de amor que Maria Helena infunde a todos que toca, a sua juventude sempre, Católica praticante, embora sejam grandes os abismos da dúvida, ela é, segundo definição de Albino Pinheiro (o criador da Banda de Ipanema, ex-diretor do Teatro João Caetano), "a baronesa da Adalberto de Campos", rua onde reside há quase 40 anos. Este seu livro saiu pela Nova Fronteira graças a insistência de Carlos Lacerda (1914-1977) que, ao saber que Maria Helena escrevia outro livro, apressou-se a pedir dela um "juramento" para, fosse publicado por sua editora - promessa cumprida agora. "Sonata Perdida" foi um "parto dolorido", mas segundo Lelena "indispensável em minha luta contra uma possível arteriosclerose". Exercício mental de uma velha - como ela, sempre que se toca em sua coisas, costuma tirar qualquer "valor" delas. Seu amigo, Wilson Bueno - que é homônimo do repórter social, integrante da equipe de Carlos Jung - define Maria Helena com muito carinho, como "uma caipira mineira, no fundo com um coração repleto de sensibilidade e ternura pelo mundo". Em recente carta e Bueno, Lelena dizia que "breve deverá sair o meu livro, aquele que não se escreve mais". Humilde ao extremo, quase permanentemente de jeans e cercada por gente jovem, amiga sempre (para o que der e vier) ela não é, entretanto, uma pessoa que recusa a sua idade, muito pelo contrário, a assume com quase orgulho. Ainda segundo definição de Bueno, que a conhecer muito bem: "Eu diria que o único orgulho de Lelena é a de que ela conseguiu o seu desejo inicial: o envelhecer com suprema dignidade. Lembre-se que atacada pelo câncer, aos 60 anos, só porque apostou na vida". Hoje, perfeitamente lúcida, Maria Helena não representa a idade que tem, nem mesmo fisicamente. Depois de "Sonata Perdida", Lelena só pretende publicar os seus secretíssimo diário que desejam sejam uma edição póstuma. Um fato que dá dimensão da humildade de Lelena - uma espécie de Annis Niin, brasileira - aquela pessoa que convive, ajudou, estimulou, incentivou moral e (muitas vezes) materialmente as pessoas vivas ou mortas que acabaram se tornando em glórias nacionais, principalmente na arte - é que quando do lançamento de "Vida, Vida", a condessa Pereira Carneiro, presidente do "Jornal do Brasil", enviou-lhe comovidíssima carta classificando o livro como uma das mais tocantes obras que já lera, inclusive convidando-a para um almoço no JB. Lelena, educadíssima, respondeu agradecendo as palavras da Condessa, mas até hoje, não conhece a monumentosa sede do "Jornal do Brasil", na Avenida Brasil, 500.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
1
16/06/1979

Enviar novo comentário

O conteúdo deste campo é privado não será exibido publicamente.
CAPTCHA
Esta questão é para verificar se você é um humano e para prevenir dos spams automáticos.
Image CAPTCHA
Digite os caracteres que aparecem na imagem.
© 1996-2016. tabloide digital - 35 anos de jornalismo sob a ótica de Aramis Millarch - Todos os direitos reservados.
Desenvolvido por Altermedia.com.br