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Aramis

Sinfonia dos bóias-frias em imagens inesquecíveis

Muitas vezes um filme impressiona visualmente, pela fotografia perfeita, cenofrafia cuidada, excelente guarda-roupa, mas não resiste uma análise mais profunda. Pecado de que é acusado - ou era, até há pouco - o francês Claude Lelouch, 43 anos, que pelo perfeccionismo da fotografia ganhou os mais importantes prêmios com << Um Homem, Uma Mulher >> (66) - em Cannes e o Oscar, mas que não resistiu a uma análise mais profunda. Outros exemplos poderiam ser lembrados, mas não é o que importa. O necessário é chamar atenção para << Cinzas no Paraíso >> (Days of Heaven) que, inesperadamente, a CIC lançou na semana passada, no Condor, cortando a carreira de << A Herdeira >> (The Blodline, 79, de Terence Young), que estava prometido para duas semanas. De princípio se pode dizer que << Days of Heaven >> é um dos mais belos filmes do ano. O Oscar de melhor fotografia a Nestor Almendros, em 1979, pelo seu trabalho neste filme não poderia ser mais justo: com uma perfeição quase única no cinema destes últimos anos, conseguiu captar toda a beleza de uma região rural, distribuindo imagens que, se fracionadas, poderiam ser transformadas em belíssimos quadros. Este ano, Almendros voltou a concorrer ao Oscar em sua categoria, por << 1941 >>, de Steven Spielberg (lançamento previsto para breve), mas perdeu para o italiano Vottirio Storaro, num das duas únicas premiações que << Apocalypse Now >>, de Coppola, conseguiu. Entretanto, << Days of Heaven >> não é apenas um filme bonito visualmente. Seu realizador. Terence Mallick, 35 anos, obteve o prêmio de melhor diretor, há um ano, em Cannes e confirmou as esperanças que nele tinham sido depositadas, há 6 anos passados, quando estreou no longa metragem com << Terra de Ninguém >> (Badlands). Diplomado pela Universidade de harvard e, a exemplo de Kubrick, com uma experiência jornalistica nas revistas << Life >> e << Newsweek >> Malick pertence a categoria dos novos diretores formados em escolas, como o American Film Institut. << Badlads >>, um sensível estudo da década de 50 e que apesar de ter entusiasmado a crítica inglesa, passou despercebido no Brasil, foi mais noticiado pela semelhança do ator ali lançado, Martin sheen (que em << Apocalipse >>, teria sua projeção definitiva) com o lendário James Dean (1931-1955), enquanto Sissy Spacek, também descoberta por Malick, viria a se transformar numa das atrizes favoritas de Robert Altman. Iniciado em 77, << Days of Heavens >> deveria ter John Travolta no papel de Bill, um ex-operário de Chicago que, junto com amante, Abby (brooke Adams) e a irmã caçula (Linda Manz), vai trabalhar na colheita de um aristocrático fazendeiro (Sam Shepard), e que, para fugir da pobreza, aceita que sua amante - que apresenta como irmã - case com o patrão. Entretanto o rebolativo astro de << Os Embalos de Sábado à Noite >> acabou sendo substituído por Richard Gere, que nos últimos 3 anos fez 5 importantes filmes, desde que Richard Brooks o colocou numa ponta em << A Procura de Mr. Goodbar >> (77). Abordando uma temática social - o trabalho temporário de famílias que perambulam pelo interior dos EUA, na segunda década deste século (a ação se passe em 1916), Malick consegue pintar o filme em aspectos sociais: pode-se, mesmo, comparar a dura vida das pessoas que aparecem no início e fim do filme, como de nossos bóias-frias - num fato que se agravaria nos anos 20 e início da década de 30, após o << crack >> de Wall Street, e que, tão bem seria retratado em << Esta Terra é Minha Terra >>. Talvez ninguém melhor do que Franck Richa, o preciso << fimreviw >> de << Time Magazine >> definiu << Days of Heaven >> : é antes de tudo um filme viçoso, cheio de imagens brilhantes Ambientado no Texas, as vésperas dos EUA entrarem na I Guerra Mundial (1914-1918) revela um panorama espetacular após outro: as planícies brancas de neve brilhando na luz azul do luar de inverno, os trigais refletindo o sol de outono queimado, céus enormes atapetados com montes de nuvens. Existe beleza suficiente para uma dezena de filmes. No entanto, o efeito geral não tenciona expressamente ser bonito. Lentas, mas corretamente as fortes imagens do filme vão dilacerando as entranhas do público - fazendo-o pensar e identificar-se socialmente com os personagens. Como nos melhores livros de Theodore dreiser (1871-1945), romancista americano que nunca olvidou o social em suas obras (a mais famosa das quais, << Uma Tragédia Americana >>, 1925, transformou-se no clássico << Um Lugar ao Sol/A Place in the Sun >>, 51 de George Stevens), Malick construiu uma complexa teia de ambiguidades morais em seu roteiro. Assim a posição aparentemente criminosa de Bill e Abby é vista humanamente, como um direito de revolta contra a pobreza. Mas também há afeição pelo privilegiado fazendeiro (interpretado por Sam Shopard, que é também dramaturgo e roteirista conhecido), homem bom e doente, cuja fortuna apenas traz-lhe solidão e monotonia. Assim não há maniqueismo hipócrita no desenvolvimento de << Cinzas no Paraíso >>: seus personagens são vítimas de uma inocente fé no sonho americano e, como acentuou Franck Rich, << sua tragédia é de se culpar a si próprio em vez de seus falsos ideais, pela miséria de suas vidas >>. Apesar de nenhum personagem poder encontrar felicidade ou justiça, no final há uma espécie de sentença divina: a praga de gafanhotos, como no Velho Testamento, um apocalíptico noturno tão danificante que faz com que o desfecho simílar de << O Dia do gafanhoto >> de Nathaniel West (1903-1940) pareça manso. A fotografia de Almendros teve um apoio especial: Haskell Wexler, 54 anos, que em 66 recebeu o Oscar por << Quem Tem Medo de Virgínia Woolf >>, um dos mais perfeitos fotógrafos e documentaristas (realizador de políticos filmes como << Dias de Fogo >>, 69; << interview With Presidente Allend >> e << A Report on Torture >>, este sobre a repressão no Brasil, ambos realizados em 71, em colaboração com Sol landaus), fez algumas seqüências adicionais. Num trabalho em que Malick, Almendros e, possivelmente Wexler, devem ter se empenhado, algumas seqüências de << Cinzas do paraíso >> cap tam o terror em simples caseiros decors, imagens fantasmagóricas que o pintor norte-americano Edward Hopper (1882-1967) deixou em seus quadros. A narração ingênua do filme - recital num coloquialismo pela menina Linda, parece surgir diretamente dos contos sardônicos de Ring Lardner (1885-1933). Apesar da construção em torno de um triângulo amoroso dilacerador - e com reflexos sociais - << Cinzas do Paraíso >> não tem nenhum diálogo introspectivo e << nem qualquer fogo de artifício Freudiano >>, como bem acentuou o crítico do << Time >>. E o seu verdadeiro significado emerge de suas imagens, não de seus intérpretes. Em nenhum momento isso se torna mais evidente do que nas seqüências finais, quando a ação se transfere da fazenda para Chicago, em 1917. De repente nos encontramos nas pegadas mortais da velha América: soldados sorridentes subindo nos trens ao som de bandas barulhentas. Nesse momento, o filme sem endereço, transcende a sua própria história para prefigurar a História de uma era. Como os personagens de Malick perderam sua inocência em um trigal enfurecido no Texas, o mesmo aconteceria a uma nação nos sangrentos campos de batalha da I Guerra Mundial. Se não bastasse o excelente roteiro, a obra-prima que Almendros (e Wexler) conseguiu(ram) nas imagens e um elenco ajustado, << Days of Heaven >> teria outro aspecto para justificar sua visão a trilha sonora de Ennio Moricone, que do compositor de baladas para westerns-spaguetti se firma hoje como um dos mais completos autores de música para o cinema. Neste trabalho - cuja edição em elepê não aconteceu no Brasil (nos EUA, saiu pela Pacific Arts Records & Taps), Morricone não só colocou um tema da maior sensibilidade, como acrescentou trechos de << O carnaval dos Animais>. de Camille Saint Saens (1835-1921), além de canções de Doygh Kershwa e Leo Kottke. Se << A Herdeira >>, com roteiro de Sidney Sheldon (o milionário autor de << O Outro lado da Meia Noite >>), com todos os ingredientes para agrado do grande público (intrigas, sexos, violência, etc) e um grande elenco (encabeçado pela sempre bela Audrey Hepburn) não resistiu a uma segunda semana, é certo que << Days of Heaven >> somente será exibido até amanhã. Mas estamos frente a um dos melhores filmes do ano, que aqueles reais apresiadores do bom cinema não devem deixar de assistir.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
1
13/05/1980

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