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Polêmica: É Caetano Veloso, fazendo sua estréia no cinema

Rio de Janeiro Se o compositor Caetano Veloso e seu produtor Guilherme Araújo não tivessem, prudentemente, preferido esticar a madrugada de sábado, indo jantar no Tarô, um dos restaurantes da moda neste verão, talvez tivesse ocorrido no Bar Tropical do Hotel Nacional o primeiro evento-escândalo às margens deste até agora bem comportado FestRio. Simplesmente porque, ao entrar no bar do Hotel Nacional, Caetano e sua "entourage" encontrariam um revoltado e colérico cineasta, Arthur Omar, 34 anos, aos gritos, fazendo as mais revoltadas críticas ao filme "O cinema falado", que, momentos antes, cerca de 1.500 pessoas haviam assistido em plena madrugada. Estréia em longa-metragem de Caetano Veloso, teve sua primeira e curtíssima pré-estréia mundial, exibida como "hors-concours", a partir da 1 hora da madrugada de domingo, na Sala Glauber Rocha - sede do FestRio. A sessão mais lotada do Festival, pois o público que ali havia comparecido, a partir das 20 horas, para assistir aos dois filmes estrangeiros em competição - o francês "Melo", de Louis Malle, e o americano "That's Life", de Black Edwards - praticamente não se afastou da sala. Como mais de 500 pessoas chegaram para conhecer o mitológico filme de Caetano - a sala de espera, sem ar condicionado (ao contrário da de exibição, com clima de montanha), ficou lotadíssima, com o público se acotovelando por mais de 30 minutos de espera. As portas se abriram e ninguém encontrou lugar. Nem mesmo Chico Buarque - companheiro e amigo de Caetano - , a esposa Marieta Severo e uma das filhas, Sílvia, que ficaram em pé, por mais de 10 minutos, até que três pessoas cederam suas poltronas a tão conhecidas presenças. O público, entusiasmado, espremia-se na ampla sala, que normalmente tem estado com apenas 70% de sua lotação, inclusive na noite de abertura. O rei está nu Depois de mais de uma hora de exibição de "O Cinema Falado" até então totalmente desconhecido de todos, pois não houve nenhuma pré-estréia para a imprensa, por decisão do seu empresário Guilherme Araújo (que agora aparece como produtor), muitos já tinham saído da sala, mas que assim mesmo continuava lotada. Nos últimos 30 minutos é que apareceram os protestos. Arthur Omar, cineasta de vanguarda, realizador de filmes experimentais como "Tristes Trópicos" (exibido um única vez em Curitiba, numa mostra realizada no Miniauditório Glauco Flores de Sá Brito) e "O Som" (exibido na categoria de curta-metragem no 1º FestRio, e premiado posteriormente no Festival de Gramado - 85), indignado, gritava: - Cinema de amadores. Vanguarda medíocre. Isto nós já fazíamos há mais de dez anos. Vaiado pelas centenas de tietes de Caetano, Arthur Omar continuou seus protestos. Tanto é que, no final, a confusão era tanta que nem deu para entender o último monólogo do filme - uma garotinha em uma longa fala. Isto porque enquanto o cineasta Arthur Omar protestava, o público, em parte, aplaudia ao filme. Em companhia de um outro cineasta de vanguarda - Carlos Frederico, 40 anos, amazonense realizador de dois filmes tão vanguardistas quanto inéditos, "Possuída por mil demônios" (1970) e "Lerfa mu" (1980), sobre o grafismo nos muros e paredes do Rio de Janeiro, no início dos anos 80 -, Arthur Omar estendia suas críticas, referindo-se violentamente à "mediocridade do filme de Caetano" e acusando-o - junto a Guilherme Araújo, seu produtor e empresário - de "repetir aquilo que os criadores de um cinema de invenção já faziam há 10 anos". A Embrafilme também entrava nas críticas, pois, segundo Omar, teria adiantado recursos para Caetano finalizar este filme, por certo devido à fama de seu realizador como compositor, "Mas nunca como cineasta". Colérico, Arthur Omar entrou no bar do Hotel Nacional, recebendo cumprimentos de muitas pessoas que também gostaram do filme, enquanto Caetano, naturalmente, desaparecia num mar de abraços da tietagem que independente da hora - já eram quase 4 horas da madrugada - delirava pelo porre verborrágico em seu filme. A Arthur Omar, lamentando que "os reais realizadores de vanguarda jamais tivessem tido uma chance de exibição de seus filmes como esta, em sessão "hors concours", à meia-noite, no sábado, no FestRio", restou um consolo: foi o primeiro a gritar que o rei estava nu - ou ao menos não trouxe, cinematograficamente, tantas lantejoulas brilhantes como as dezenas de páginas que o seu filme, por certo, estará recebendo a partir desta semana. Porre verborrágico Após uma visão de madrugada, numa sala ultralotada, interrompida uma vez por problemas de projeção e com aplausos e vaias, é difícil emitir um juízo crítico de "O cinema falado". O filme tem duas horas e é um coquetel de imagens e situações. Começa com uma festa num apartamento, com um desfile de integrantes da "fauna velosense", quando se ouve (vê) até Elza Soares num rápido "take" cantando "Língua". Depois há longas intervenções, de gente mais (ou menos) conhecida, falando em português, inglês, e até alemão (devidamente legendado) sobre vida, morte, sexo, homossexualismo, cinema de Wim Enders, Júlio Bressane, Godard, Rogério Sganzerla et. Artes plásticas, Teatro, Guimarães Rosa, Heidegger, filosofia alemã e brasileira etc. - num porre literário, pretensioso, com toda a intelectualidade pós-tropicália. Só mesmo Paulo Leminski, amigo de Caetano, parece que não foi citado. Assim como "Araça Azul" foi um disco para entendidos lançado há cerca de 10 anos por Caetano. Rompedor de estruturas convencionais - e que levou anos para ser devidamente deglutido e interpretado (entre outros, deve-se ao poeta, professor e ensaísta Affonso Romano de Sant'Anna a melhor avaliação daquele álbum) -, por certo este filme-ensaio, "O cinema falado", vai levar ao orgasmo intelectual a tietagem na imprensa, mas também deve provocar críticas e colocações mais duras. Um fato é certo: Reservado para ser mostrado neste FestRio, "O cinema falado", um longa-metragem em que Caetano Veloso levou para a tela suas múltiplas pretensões (e preocupações) cinematográficas é um filme (filme? Há quem até não considere-o, tal o seu hermetismo e linguagem) para ser debatido, criticado, odiado e, naturalmente, amado. A fotografia de Pedro Farkas é lindíssima - "bem cuidada, acadêmica para um filme que pretende ser inovador", como dizia o cineasta Carlos Frederico. Na trilha sonora há, em "off", a voz de João Gilberto, emocionante em "Águas de Março" (Antônio Carlos Jobim), enquanto na cena vê-se um crioulo dançando; a mãe de Caetano aparece, terna, mostrando sua bela voz. O próprio Caetano assovia temas de "A Estrada" e "Il Vitelloni", de Nino Rotta, no único momento em que aparece - na Praça de Santo Amaro, Bahia, à noite ( a mais bela seqüência do filme) - lembrando seu passado de cinemaníaco. Enfim, quando os superstars da música passam para o cinema - Laurie Anderson, o Nostradamus de saias, com seus performes technopop, está no Rio desde sexta-feira, com seu "Home of the Brave" - e David Byrnes, com "True Stories", encerrará, no próximo sábado, o FestRio, Caetano não deixaria de, em sua síndrome de eterna (busca) e permanência da juventude, também desperdiçar a ocasião.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
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25/11/1986

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