Ouça o canto maior de Marisa e Beth Carvalho
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 24 de novembro de 1974
Cinco cantoras e cinco lps muito importantes. Salutares e otimistas para quem ama a música do povo e fica preocupado em ver tanto bagulho estrangeiro ocupando o lugar do mercado que merecer ser exclusivo de nossa música popular.
Mas felizmente há produtores como Aloysio de Oliveira - em boa hora de volta à fonografia brasileira, lançando O Evento, e trazendo de volta ao disco, após quase cinco anos de ausência, a maravilhosa Maysa, num álbum que ao lado da Paulistano de Billy Blanco e de um histórico encontro de Dorival Caymmi e Ary Barroso (1903-1964) completam o primeiro suplemento desta nova etiqueta realmente o grande Evento em favor da MPB neste 1974 que está chegando ao final. Pela Tapecar, sai o segundo - e já antológico - lp da maravilhosa Beth Carvalho. Pela Odeon, duas extraordinárias cantoras - Simone e Marisa, e pela Philips, o Cantar de Gal Costa, cada uma em seu estilo, em seu feeling, com muita personalidade - mas todas brasileiríssimas, sinceras em seu canto de amor [à] nossa música popular. Indistintamente, todos este cinco lps são indispensáveis na coleção de quem ama a música vocal brasileira - e no recenseamento dos melhores de 1974, de dezembro próximo, ampliam as opções para a seleção dos dez títulos.
Com pouco mais de três anos de carreira, Beth Carvalho já é uma das mais importantes vocalistas/sambistas brasileiras - e só não adjetivamos de a melhor, para não cometer injustiças com muitas outras - tão pródigo é o nosso País em talento de belas mulheres para a canção. Em 1971, Beth fez sua primeira gravação, com a música de Edmundo Souto/Paulinho Tapajós, "Eu só quero ver", que embora distante das paradas de sucesso. Revelava uma intérprete segura/sensível.
Depois, pouco antes do carnaval de 72, foi a vez do "Rio Grande do Sul na Festa de Preto Ferro". Paralelamente, alguns espetáculos como "Sexta-Feira é Dia de Samba" e "A Hora e a Vez do Samba'. Mas para o público maior, o grande impacto foi no ano passado, quando uma pequena etiqueta - mas orientada com [inteligência] e amor à MPB, fez um dos melhores lps de 1973: "Canto por um Novo Dia". A respeito desta gravação, diz Beth:
"Quando falo nos [discos] do ano passado e digo primeiro lp, é porque sinto isso de verdade. A partir daí houve um entrosamento muito maior com o público e, aos poucos, fui-me sentindo mais livre nas interpretações. Não sei ao certo, acho que é porque o samba me permite fazer uma coisa que considero da maior importância: mostrar a música exatamente como ela é, como seu autor um dia a compôs".
Se "Canto Por Um Novo Dia", foi dedicado a Clementina de Jesus, seu novo LP - "Prá Seu Governo" (Tapecar LP x-22, outubro/74) é dedicado "à grande amiga e incentivadora Elizabeth Carvalho". E, indiretamente, os dois lps são também preitos de homenagem de Beth ao poeta Nelson do Cavaquinho com o qual ela fará um show para teatro com possível apresentação no Paiol, nos próximos meses.
O que entusiasma ao fã de nossa Música Popular neste "Prá Seu Governo", é o cuidado da produção (José Xavier/Jorge Coutinho), a beleza dos arranjos e regência (Paulo Moura/Orlando Silveira) o apoio perfeito que o numeroso grupo de instrumentistas garantiu a cada faixa, emoldurando da maneira mais perfeita o antológico repertório selecionado para o lp, com músicas perfeitas para a voz (estilo) de Beth. Assim, temos a amparar a sua voz clara, suave e equilibrada; os violões de Dino (7 cordas) e Cesar, do regional Época de Ouro, mais Dario, Neco e Nelson Cavaquinho; José Menezes no violão tenor e viola de 12 cordas; quatro executantes de cavaquinho - Mané do Cavaco, José Menezes, Alceu Maia, Jonas (da Época de Ouro); Del Riam no bandolim (também da Época de Ouro) afora 40 outros, instrumentistas do mais alto nível, como o baterista Wilson das Neves, o clarinetista Abel Ferreira (59 anos, líder do conjunto Turma do Serreno, há anos afastado da vida artística) o flautista Copinha, mais uma seção de 12 violinos e dando o molho-da-cozinha e grupo Nosso Samba.
Na objetiva nota de contracapa, o compositor e homem-de-rádio Mario Lago lembra acertadamente que "o grande valor deste disco é ser informal, às vezes até mal comportado como a alegria estado de alma e não alegria pose para retrato. É como se a coisa estivesse acontecendo não num estúdio de gravação e sim numa roda de samba improvisada em fundo de quintal".
E isso sente-se nos diferentes estilos de samba que Beth Carvalho interpreta, com todo amor, nas 12 faixas deste disco definitivo. De um estilo bem liberto, na tradição dos morros cariocas, são "1800 colinas" de Gracia do Salgueiro (faixa B, lado A), "Maior é Deus" (Eduardo Godin e Paulo Cesar Pinheiro), "A Pedida é Essa" (Norival Reis/Vicente Mattos), "Vovó Chica" (Jurandir da Mangueira" e "Me Ganhou" (Gisa Nogueira).
De Nelson Cavaquinho e seu melhor parceiro, Guilherme de Brito, temos duas inéditas obras-primas "Miragem" (com o próprio Nelson ao violão) e "Falência". Em "Miragem", mais uma jóia poética de Nelson/Guilherme:
Sou qual ave que não sabe chorar.
Todos gostam de ouvir o meu cantar.
Com meu violão sempre colado.
Ao meu lado tão amargurado
A minha vida é um livro aberto
Que conta histórias de um deserto
Minha alegria que não tem fim
E a miragem que existem em mim.
Outra jóia poética é "Tesoura", dos jovens César Costa Filho e Walter Queiroz, pra nós já, definitivamente, uma das 10 músicas do ano, com uma poesia inesquecível a quem tem sensibilidade.
Quem trocou a alma pela palma
E vendeu a sua calma
Nos mercados da paixão
Quem rasgou a seda da ternura
Nas barracas da amargura
E do fel se embriagou
Quem derramou
Toda tinta do tinteiro
E não fez um verso inteiro
Quem falasse de perdão. Ah!
Quem se perdeu do amor humano
É como Tesoura Cega
Não tem mais direito ao pano.
Mas todas as músicas [deste] lp de Beth são sólidas, belas, "Prá Ninguém Chorar", de Souto-Paulo Cesar Pinheiro, diz um recado otimista:
Vou cantar
Enquanto a voz deixar
Você verá
Que o mundo então vai se juntar
Num coro e me ajudar, e
quando o mal chegar
você verá
Que o mundo então cantando junto
O mal espantará
E a canção vai se perpetuar
E o recado vai ficar
Solto pelo ar.
De Monarco da Portela, "Fim do Sofrimento", é um dos mais dolentes sambas dor de cotovelo, bem brasileiro confessada sem preconceitos nem vergonha dos amigos.
"Agora é Portela 74", uma beleza de música de Maurício Tapajos-Paulo Cesar Pinheiro, lançada pelo MPB-4 há poucos meses e já sendo cantada em todo Brasil, é ampliada em sua beleza por Beth, que, para encerrar o [álbum] recria a música-título, um dos maiores sucessos do Carnaval de 1951: "Prá seu governo" de Haroldo Lobo (1910-1965) e Milton de Oliveira, com uma estrofe que todo o Brasil canta há 23 anos, em todos os Carnavais:
Você não é mais meu amor
Porque vive a chorar
Prá seu governo
Já tenho outro em seu lugar
Dona de uma das mais densas vozes da noite brasileira, intérprete como [ninguém] do dolente Samba - Dor-de-Cotovelo, a cantora Marisa (Vértulo Brandão, 41 anos) é mais uma das (muitas) bonitas coisas que a MPB deve a João Gilberto. Pois há 20 anos, quando o baiano que inovou a Bossa Nova ainda era um [anônimo] integrante do grupo vocal. Os Garotos da Lua, se entusiasmou com a voz e o estilo de Marisa, que estreando em 1954 como crooner da boate "Midnight", em Copacabana, GB, logo ficaria conhecida como "Marisa, a Gata Mansa", a tal ponto que seu sobrenome só é encontrado nos registros civis.
Cantora de boate, distante da televisão e shows, Marisa nunca teve uma carreira regular. Casada com o pianista Cesar Camargo Mariano (hoje marido da cantora Elis Regina), intercalou suas longas temporadas nas boates Litle Club e Bacará com períodos de afastamento artístico, fazendo alguns lps importantes na Copacabana, mas pouco divulgados fora do círculo de fãs de seu estilo, [freqüentadores das boates que se apresentava: "Marisa Simplesmente", "A Suave Marisa", Marisa no Litle Club" (com Zé Maria, pianista) e o [nostálgico] "Canções e Saudades de Dolores Duran", ao lado de Denise", irmã mais nova de Dolores (1930-1959). Há quatro anos, quando ainda vivia com Cesar Camargo, Marisa fez um excelente lp na Equipe (EQC 855), de Oswaldo Cadaxo, onde mostrava inclusive algumas composições ("Lena", "Manhã de Nós Dois").
Passaram-se mais [três] anos para que Marisa ressurgisse como a melhor intérprete de uma das mais bonitas [músicas] brasileiras destes últimos 10 anos: "Viagem" (Paulo Cesar Pinheiro/João Aquino). Gravada inicialmente em compacto simples, "Viagem" deu o título ao lp de Marisa feito no ano passado (Odeon, 3768), apaixonada realização de Herminio Belo de Carvalho, com alguns dos mais belos momentos do cancioneiro brasileiro. Agora, Marisa faz um novo disco, produzido pelo jovem e ainda pouco conhecido Fernando Luis da Costa, [responsável] também pelos arranjos e [regência]. Acompanhado por 14 instrumentistas - desde o Terra Trio até o incrível Nicolino Copia, o flautista Copinha, este "Marisa" (SMOFB 3840, novembro/74) é um lp [romântico] com gosto e amor de madrugada, muita dor de cotovelo, e onde [músicas] novas são intercaladas a temas já conhecidos, todos valorizadíssimos pela voz acolhedora e de promessa de Marisa - uma cantora ideal para se ouvir na solidão da madrugada, com muito amor (ou muita dor) no coração. Pois assim, as palavras de "Chuva, Gente e Carnaval" (Ivor Lancelloti), "Segrêdo" (Herivelto Martins/ Marino Pinto), "O Samba Que eu Lhe Fiz" (Sueli Costa), "Canção da Tristeza" (Edison Borges/Dolores Duran), "Escuta" (Ivon Curi), "El Ciego" (Armando Manzenero), "aldebarã" (Sueli Costa/Tite de Lemos), "Confetis" (Ivor Lancelloti), "Só Saudade" (Newton Mendonça-Antonio Carlos Jobim), "[Três] Lágrimas" (Ary Barroso), e "Mundo Novo, Vida Nova" (Gonzaga Junior), adquirem toda a dimensão de - e que Marisa, como poucas vocalistas brasileiras, soube transmitir com voz/coração e sentimento. Um disco para ser sentido e amado!
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