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Aramis

Os Blues que o filme não mostrou

"Papai e mamãe eram ainda duas crianças quando se casaram. Ele tinha dezoito anos, ela dezesseis e eu três" (primeiro parágrafo da autobiografia "Lady Sings The Blues") Tudo que dê negativo pudesse ser almhavado com relação a "O Ocaso de Uma Estrela" (cine condor, até sexta em cartaz) é neutralizado por um fator positivo: a luxuosa produçào de Berry Gordy para a Paramount, que ganhou na indicação da cantora atriz Diana Ross (ex-Supremes) para o Oscar-73 um fator extra de promoção, provocou que uma imensa faixa de público que até agora nunca tinha ouvido falar no nome de Billie Holiday despertasse sua atençào para esta que foi a melhor cantora de jazz de todos os tempos. Quem acompanha o cinema e suas relações com biografias de cantores, compositores, autores, etc., sabe que raramente os resultados são positivos. Entre outros cantoras que mereceram cinebiografias inexpressivas estão Liliam Roth interpretada por susan Hayward em "Eu Chorarei Amanhã" (I'll Cry Tomorrow, 1955, de Delbert Mann) e Helena Morgan (1900-1941), que a hoje esquecida Ann Blyth viveu em "Com Lágrimas na Voz"(The Helen Morgan Story, 1957, de Michael Curtiz). Dois, entre muitos outros exemplos, que comprovam também que as relações do jazz e do cinema, nunca foram das mais felizes, embora já exista uma filmografia a respeito com 709 citaçòes, levantadas por um inglês fanático - David Mecker e publicada em março de 1972 pelo British Film Institut ("Jazz In The Movies"). Uma cantora tão maravilhosa como Billie Holiday, mas que ironicamente teve uma vida tão dramática que nem o mais sádico roteirista conseguiria imaginar - era um desafio muito grande para se transformar num filme de consumo do grande público - que prefere sempre a pílula dourada, no caso a música bem emoldurada. Nascida num gueto de Baltimore, em 1915 filha natural de pais adolescentes, vista sempre como "cúmplice inocente de uma desgraça familiar", ela nunca teve direito à infância. Aos seis anos, já trabalhava limpando soalhos nas casas de famílias brancas. Aos 8 anos, quando a bisavó, sua grande amiga, adormeceu abraçada a ela, amanheceu morta. O choque foi tremendo e ela passou um mês hospitalizada. Aos 10 anos foi violentada por um homem de 40 anos. E posta então num reformatório, onde, certa vez, para corrigi-la, deixaram-na trancada uma noite inteira num quarto, com o cadáver de um garota. Muda-se depois com a mãe para Nova Iorque e aos 12 anos já era prostituta. Certo dia, recusou um cliente e foi presa. Na polícia, resistiu aos avanços de uma lésbica, as duas entraram em luta e isso lhe valeu mais uns dias de prisão. Este prólogo, bastante desagradável em termos de uma produção cinematográfica, é omitido em "O Ocaso de Uma Estrela": o diretor Sdney J. Furie - que os espectadores mais atentos passaram a admirar a partir de 1965, com o barroco filme de espionagem "Iperess, Arquivo Confidencial"- onde Michael Caine foi lançado como Harry Palmer, uma espécie de anti-007 - preferiu iniciar a ação de seu filme com Billie já moça, em Nova York, numa pequena (que na verdade não foi tão curta assim) experiência de prostituta. A partir daí, procura desenvolver, de uma forma impessoal e pouco criativa, os diversos aspectos de sua atormentada carreira - marcada por tóxicos, perseguição policial e muitos amantes - também estes olvidados, somente lembrando o sempre fiel marido, Louis Mckay (interpretado por Billy Dce Williams). A carreira de Billie começou no dia em que ela entrou num dancing da Sétima Avenida em Nova Iork a procura de emprego. Ela se chamava Elconora Fagan e na época morava com a mãe num quarto sem aquecimento. O proprietário do dancing - como mostra o filme - perguntou o que ela sabia fazer. Respondeu: "Sou dançarina". Tentou alguns passos mas foi reprovada. Mas houve uma chance quando o pianista lhe sugeriu cantar. E cantou Body And Soul. Verdade ou lenda, contam que houve um silêncio total quando ela terminou. Segundos depois, estouravam os aplausos. A ascensão da nova cantora seria rápida, como registrou o estudioso Juarez Barroso (JB,14/2/73): em 1930, em Chicago, gravou seu primeiro disco com o conjunto de Benny Goodman. Entre 1935 e 1939, gravou para a Columbia uma série que ficou famosa, com um conjunto organizado pelo pianista teddy Wilson, e do qual participaria o saxofonista Lester Young (1909-1959), seu grande amigo e acompanhador preferido, que lhe daria o apelido de Lady Day. Mas a excursionar com a orquestra de Artie Shaw. Registra ainda Juarez Barroso que foi então que Billie conseguiu o prodígio de ser reconhecida como a maior cantora de jazz sem obedecer - por força mesmo das circunstâncias - a um repertório rigorosamente jazzístico no sentido purista do termo. Tornou-se impossível, ou impróprio, por exemplo, compará-la à sua grande antecessora. Bessie Smith (1894-1937) que decai na medida em que é obrigada a abandonar o classicismo dos blues e fazer concessões comerciais. Billie faria concessões sem cair na concessão. Dá um sentido inteiramente novo a canções brancas ou fáceis - como o Love Me or Leave Me, de Donaldson e Gus Khan. Billie cria para essa música uma divisão inteiramente nova e consegue transmitir desespero aos versos que outras cantoras interpretariam dentro de uma melosidade romântica. Algumas de suas canções favoritas fogem inteiramente ao apelo popular, não mostram qualquer intenção de agradar. É o caso de Good Morning, Heartache, Strange Fruit e God Bless the Child, que incomodam mais do que entusiasmam, mais orientadas para o reflexivo que para o sensorial. O crítico Leonard Feather já considerou Strange Fruit "O primeiro protesto significativo, em palavras e músicas, o primeiro grito não sufocado contra o racismo", com Billie falando de estranhos frutos pendentes das árvores do sul. As árvores têm sangue nas folhas e nas raízes. Os frutos são cadáveres de negros linchados, que balançam ao vento. Uma das imagens/canções mais felizes de "Lady Sings The Blues". A 31 de maio de 1959, depois de sofrer um desmaio em seu apartamento, foi internada no Metropolitan Hospital, no Harlem. Estava com o coração, os pulmòes e o fígado arrasados. No leito de morte, ainda recebeu a visita da polícia. Agentes de narcóticos, atendendo a denúncia de uma enfermeira, foram o estado de fraqueza em que se encontrava. Levá-la diante de um juiz era impossível. Assim mesmo, só a onda de protestos que se levantou no Harlem impediu que encenassem uma audiência de julgamento no próprio quarto doente. Depois, melhoras e pioras, alternaram-se. Até que às 3 horas da madrugada de 17 de julho sua resistência chegou ao fim. Billie morreu. Naquela manhã, ao morrer, tinha só 75 dólares em notas, amarrados com uma fita, na sua perna, e 70 centavos, na sua conta de Banco. Um amigo, respondendo a uma pergunta - "de que ela morreu? - disse: Ela morreu de tudo.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
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Leitura
18/05/1974

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