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Aramis

Operário hipoteca a cada para a música da anistia

1979 começou, em termos musicais, com duas canções falando em anistia e regresso dos exilados e banidos: "O Bêbado e o Equilibrista" (João Bosco/Aldir Blanc) e "Tô Voltando" (Maurício Tapajós/Paulo Cesar Pinheiro), lançadas por um novo grupo vocal, o Viva Voz, que começou na Continental e acabou terminando o ano com seu elepê pela Odeon. O sucesso destas duas belas músicas - que tiveram gravações diversas, com intérpretes como Elis Regina e Simone, provocou que o tema motivasse mais de 20 outras canções. Em Curitiba, na casa 12 da Rua 3, na distante Vila São Braz, um operário da divisão de pavimentação asfáltica da Prefeitura, sem conhecer nenhuma das músicas que começavam a ser feitas no Rio, apanhou o seu violão (do qual só conhece poucas posições)e, ao longo de algumas noites, fez as harmonias e a letra de "O mês da anistia". As notícias do Ano Internacional da Criança, aberta no reveillon de 31 de dezembro de 1978, com a superpromoção comandada por Roberto Carlos, o motivaram para outra música, intitulada simplesmente "Ano Internacional da Criança". Mostrou as duas para alguns colegas e procurou Ivan Graciano, acordeonista, diretor da BG Gravações, etiqueta que já produziu uma dezena de elepês e seis compactos, além de proprietário do "Forró do Belarmino". Ivan comoveu-se com a simplicidade do compositor: Altamiro Silva Machado, 58 anos, paranaense de Guarapuava, desde 1961 operário da Prefeitura, casado, 10 filhos, 4 netos, salário mensal de Cr$ 5.740,00. No Sir-Estúdio de Som & Imagem, Ivan gravou as duas músicas de Miro Machado - nome artístico adotado, acompanhando-o no acordeon e baixo, com Tico (Paulo Faria de Souza) fazendo bateria e vocal e Juarez na guitarra. O custo de estúdio e prensagem de 500 cópias do compacto ficou em Cr$ 40 mil, que Miro Machado saldou em menos de 90 dias (enquanto muitos artistas e produtores conhecidos há mais de um ano estão com altas dívidas com Graciano). Para levantar os Cr$ 40 mil necessários para ter suas músicas em discos, Altamiro Silva Machado procurou uma "firma de empréstimos", hipotecou sua casa e assinou "um monte de promissórias" de Cr$ 2.800,00 mensais - mais de 50% de seu salário, que espera resgatar com a venda dos 500 exemplares de seu compacto, a Cr$ 100,00 a unidade, dos quais, na primeira semana, conseguiu comercializar 80 Nascido no interior de Guarapuava, região madeireira, no início do século, até 1961 Altamiro Machado trabalhou em serrarias. Como sua mãe, Maria Francisca, havia se mudado para Curitiba, ele reuniu a família e veio para a cidade grande. Aqui teve diferentes ocupações, até conseguir uma vaga de operário braçal na Prefeitura. Embora tenha apenas o 2º ano do curso primário (incompleto), gosta de ler, "especialmente jornais e revistas para manter-se atualizado". Fez um curso de contabilidade por correspondência e, anualmente, faz uma média de 200 declarações-de-renda para colegas "que não sabem como preencher papelada". De cada um, recebe uma gratificação simbólica: Cr$ 10,00. xxx E a música quando surgiu na vida de Miro Machado? Em sua simplicidade, este operário de 58 anos, sorriso que exibe dentes perfeitos, responde: - Gostar, eu sempre gostei. Mas estas foram as duas primeiras músicas que fiz. E achei que deveria gravar. Sem participação política - "sou apenas eleitor, que voto no candidato que merecer mais honesto", a anistia o interessou como notícia a partir de 1977. Pensou então em fazer uma música, saindo então uma letra simples, talvez com rimas discutíveis, mas sincera, por representar a espontaneidade de um homem simples, que nem sequer sabia que o mesmo tema inspirava a compositores profissionais. "Acho que a anistia foi importante, no sentido humano e por isto lhe dediquei esta música", explica o operário-compositor, que não tem idéia se vai ou não fazer novas composições, "pois tudo depende da inspiração". Obrigado aos estrangeiros/Que nos deram hospedagem Por ato lá dos brasileiros/iniciamos nossas viagens Brasil, andei pelo mundo/Andei lá e acolá Mas com amor profundo/É que volto para cá Junho de 79 foi o mês da anistia Foi um ato que comove E trouxe muita alegria. "O Mês da Anistia" prossegue com mais alguns versos, onde, em sua simplicidade Miro fala da "Terra de Santa Cruz", rimando com "queremos a tua luz", terminando com otimismo e esperança: Brasil, pedimos a Deus/que sempre guie teus passos Que todos os filhos teus/Possam se unir em abraços Brasil dos meus antepassados/Terra que me viu nascer Quero estar sempre ao teu lado/e aqui quero morrer xxx Concebida especialmente para ser divulgada em 1979, "Ano Internacional da Criança" é, antes de tudo uma mensagem às crianças, na linguagem simples de Altamiro Machado, que começa recomendando: Criança amai a Deus Isto em primeiro lugar Que todos os passos teus ajudará a galgar Amai também a sua terra/A Pátria em que nasceu. xxx Miro - ou Altamiro - Silva Machado é um homem simples. Um operário que mora na distante Vila de São Braz, numa casa construída com imensos sacrifícios e que não teve dúvidas em hipotecá-la para financiar a edição de seu disco. Em momento algum pensou em recorrer a qualquer pessoa ou entidade para financiar seu sonho, e só na quarta-feira é que Ivan Graciano, comovido soube da forma com que ele havia obtido o dinheiro para pagar o custo da gravação. Miro desconhece totalmente a máquina musical e, em sua ingenuidade, espera recuperar o investimento vendendo avulsamente o seu disco. Quando se vê tantos desperdícios em promoções discutíveis, mordomias condenáveis projetos imensos em nome da cultura, o encontro com um operário quase sexagenário, sem intenções outras a não ser a de colocar num disquinho a emoção que dois fatos lhe causaram - a anistia e o Ano Internacional da Criança - faz com que se repense muito a palavra "programa cultural". O disco de Miro Machado poderia passar despercebido, como centenas de outras gravações pagas, sabe-se lá com que sacrifícios, por seus autores-intérpretes, Ivan Graciano, que tem se preocupado em ajudar a artistas populares e jovens, com os custos mais reduzidos possíveis, entendeu que Miro Machado é um caso a parte. Tão simples que nem havia pensado em sequer tenta - levar um exemplar do disco ao prefeito Jaime Lerner, que ainda há duas semanas inaugurava a Praça Jacob do Bandolim e se entusiasmava, com Hermínio Bello de Carvalho e Joel do Nascimento, com uma idéia de criar um Conservatório de Música Popular em Curitiba. Enquanto isto, com todo sacrifício pessoal, Miro fez seu disco e só espera vender as cópias para pagar a dívida e não perder sua casa. "Não tenho nenhuma outra ilusão", diz, modestamente. É preciso acrescentar algo?
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
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Tablóide
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25/04/1980

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