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Aramis

Obrigado, mãe Clementina!

É emocionante! No palco uma velha senhora, rosto terno e sorriso bondoso, vestida de branco, cantando com aquela força que parece ser privilégio da raça negra. Mágica voz que soa como um instrumento - afinado, denso, único e que a faz, em solo, sem acompanhamento, ser ainda mais admirável, aos 74 anos (ou seriam 75? Ou 71? - ela própria não tem certeza das datas), apenas 13 de carreira profissional, Clementina de Jesus já é história na música brasileira. E só a oportunidade de aplaudi-la ao vivo, em três únicos "Shows" no Paiol (hoje, 21 horas, a última apresentação) redime os muitos pecados da Fundação Cultural, cometidos nestes últimos tempos. E faz com que o presidente Ennio Marques Ferreira e seu assessor musical, Marinho Galera, que acertou a temporada, mereçam um caloroso e sincero abraço! Pois, realmente, em termos de cultura musical brasileira, autêntica, sem paetês e concessões, a presença de "mãe" Clementina e dos rapazes do grupo Vissungo é um acontecimento emocionante e histórico. xxx Em belo e inteligente texto, (O Estado, 12ª página, 1º/4/77), a jornalista Antonia Eliana Chagas falou, didaticamente a respeito da importância da música que Clementina e o Vissungo apresentam: os jongos, as canções de escravos, as toadas mineiras, músicas de domínio público, que se perderiam no tempo se pessoas como Clementina não as retivessem na memória. Hermínio Bello de Carvalho, o homem que lançou Clementina de Jesus, profissionalmente, em 1964, no "show" "Rosa de Ouro", em depoimento que nos prestou há uma semana, falando de sua "mãe" Clementina, a comparou à cantora negra americana Bessie Smith (1894-1937) e disse que ela "traz de dentro das senzalas a doçura das mães pretas que acalentaram um dia as nossas vidas, o nosso sonho, as nossas histórias de carochinhas. Ela é o resumo cultural do Brasil. E o resumo cultural das massas oprimidas, que não conseguem chegar ao seu mercado, porque são obstadas por um processo anacrônico de maledicência, de que essa pessoa não vai fazer sucesso porque "é loucura gravar isso" ou então "isso não vale a pena ser registrado". Realmente, Clementina nunca será lançada em fantásticos programas de TV de lâminas em cenário, paetês, porque "não é visual". Um público que se deslumbra com os modismos sociais, transvertidos de "arte e cultura", também jamais entenderá o espetáculo seco, direto e sincero, como Clementina e o grupo Vissungo apresentam. Os universitários - ah! O eterno público universitário - que hoje se deslumbra com o discutível "latinismo musical" e, agora, lotam auditórios em que se apresenta Milton Nascimento ou Caetano Veloso, parecem incapazes de perceberem que mais importante do que todos os latinismos (que, em termos de "marketing" começa a ser imposto comercialmente no Brasil) são os jongos e canções de trabalho que Clementina, em sua pureza, sabe interpretar. E que Milton e Caetano, souberam aprender muito com mãe Clementina, em suas sete décadas de pureza musical. Um espetáculo com Clementina não pode seguir um roteiro pré estabelecido: ela como um músico de jazz, cria/recria a cada momento e, por exemplo na sexta-feira, a propósito da apresentação da toada "Cuitelinho", do folclore mineiro, pelo Vissungo, acabou lembrando uma música que não estava no programa - um desconhecido samba de Carlos Cachaça, falando sobre o heroísmo dos brasileiros na II Guerra Mundial. A precariedade do equipamento de som (que atrasou o início da estréia em quase um hora), o irritante pisca-pisca da luz, o frio inesperado da noite de sexta-feira - nada, absolutamente nada, impediu que o recital de mãe Clementina fosse a última das brasileiras a interpretar uma música de gosto de terra que, como diria Tinhorão, só pode ser compreendida por aqueles que realmente de despem de preconceitos/comprometimentos e limpam os seus ouvidos e suas almas do condicionamento das "Discotheques" da vida. Felizmente, em momento de feliz iluminação, a diretoria da Fundação Cultural, trouxe a Curitiba a grande Clementina de Jesus e os rapazes do Vissungo (Luís Antônio e Antônio José do Espírito Santo; Carlos Mascarenhas Brito, mais Jorge Crespo e Ilton Mendes) para mostrarem um pouco de Brasil, de honesta cultura popular, a um público interessado. Pena que tão poucas pessoas - principalmente os jovens universitários, que se dizem "curtidores" dos valores do povo - tenham se preocupado em ir aplaudir esta negra quase octogenária, mas alma de criança feliz, que, como um duende mágico, transmite sons e sentimentos difíceis de serem explicados em palavras. Mas que ficam dentro de nós, para todo o sempre. Obrigado mãe Clementina, por ter vindo! LEGENDA FOTO - Clementina
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
4
03/04/1977

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