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Aramis

O som dos pampas (I) - Ellwanger e Jardim, o gauchismo sem sotaque

Para quem imagina que aquilo que se poderia chamar de "a nova música gaúcha" se resume no talento dos irmãos Ramil - Kleiton & Kledir ou o vanguardista Victor (que fez um dos melhores discos de 84), aconselha-se, com urgência, que se escute, atenciosamente, os discos de Jerônimo Jardim ("Terceiro Sinal", Soma), Nelson Coelho de Castro ("Juntos", Barclay), Galileu Garcia ("Pulsações", Trilhas/Continental) e Raul Ellwanger ("Gaudério", Som Livre/RBS). Depois, podem ouvir também o Kleiton & Kledir. Há ainda Pery Souza - com o seu primeiro elepê saindo ou o afinadíssimo cantor Victor Hugo (Alves da Silva, Taquara, 13/12/1961), até agora presente em discos de festivais, mas merecendo também - e urgentemente - um elepê-solo. Num estado de extraordinária riqueza musical - prova está em mais de 200 elepês lançados nestes últimos 3 anos e no qual há uma média de 40 sérios festivais anuais (incluindo os de projeção internacional, como Califórnia, em Uruguaiana ou o Musicanto, de Santa Rosa), há uma pujança musical notável. São cantores, compositores, grupos vocais e instrumentais que se espraiam em diferentes gêneros e estilos, numa riqueza sonora difícil de ser comparada a qualquer outro movimento dos últimos dez anos. O fenômeno do Nativismo - a valorização dos valores tradicionais do Rio Grande do Sul, que analisamos em série de 12 artigos aqui mesmo em O ESTADO (novembro/1984) não limitou a criatividade de um grupo de jovens de imenso talento. Assim, ao mesmo tempo que se mantém atentos aos valores regionais, esta gauchada na faixa dos 25/35 anos se preocupa em fazer uma música moderna, inteligente, capaz de ser aceita mesmo nos mais empedernidos centros urbanos - a exemplo do que o valioso trabalho dos irmãos Kleiton & Kledir obteve. O boom gaúcho se deve há inúmeros fatores e, curiosamente, não se pode incluir qualquer oficialismo na questão. Ao contrário, talvez o fato dos válidos festivais nativistas serem praticamente autônomos (o de Santa Rosa, que oferece os maiores prêmios do País, chega a dar lucro ao município) é que estimulou os gaúchos a procurarem seus próprios caminhos - sem o paternalismo que bloqueia "compositores" em alguns Estados. Os gaúchos tem ido à luta e mesmo saindo de Porto Alegre, buscando espaços no Rio e São Paulo, acabam, como bons filhos pródigos, encontram mesmo na capital das margens do Guaíba condições para fazerem seus discos. Se a Isaec foi uma experiência infelizmente frustrante - após mais de 100 elepês lançados em menos de 3 anos, período em que o competente Geraldo Flach dirigiu a etiqueta - hoje as grandes gravadoras se voltaram para o rico mercado sulino. Não foi sem razão que Fernando Vieira, homem de TV e promoções, conseguiu realizar por 3 anos (1981-1983) o maior evento para congraçamento artístico - o Discovisão/Festa Nacional do Disco, em Canela. Ayrton dos Anjos ("Patinete"), um gaúcho de 42 anos, incrível agilidade e criatividade, há 20 anos vem produzindo discos com artistas gaúchos, levando shows a outras cidades, lutando para fazer com que tanto os artistas nativistas como os que buscam caminhos mais sofisticados, encontrem seus próprios rumos. Ex-produtor da Polygram, passando pela Continental, Copacabana, K-Tel, Ayrton agora divide com Dércio Silva Castro, da Sigla/Som Livre, a intensidade das produções do selo RBS, com apoio do poderoso grupo TV Gaúcho/Zero Hora. Assim, ao lado da documentação criteriosa de todos os festivais de música realizados no Rio Grande do Sul (raro é o que não tem as 12 finalistas reunidas em elepê), os artistas gaúchos vão ganhando seus discos solos. Hoje, nesta primeira parte, vamos falar de dois artistas que buscam caminhos próprios. RAUL ELLWANGER, tem uma vivência internacional. Trabalhou em vários países da América do Sul e sua experiência traduziu-se na produção de ótimos elepês com música latino-americana para a extinta Bandeirantes Discos, pela qual saiu seu primeiro elepê (1980). Naquele disco, o poeta Carlos Nejar já o saudava ao procurar retraçar as fronteiras geográficas com as linhas do coração e as do canto, sempre mais teimoso, "redescobrindo os ritmos da América, na medida em que a terra é a história do homem e esta se pode fazer canção". Quatro anos depois, Ellwanger retorna com um novo e belíssimo disco, no qual o latinismo está presente com participações muito afetuosas de sua amiga Mercedes Sosa ("Pialo de Sangue") e do cubano Pablo Milanez ("Começo e Final de uma Verde Manhã/Comienzo Y Final de Una Verde Mañana") e de seu conterrâneo Bebeto Alves em "Eu Só Peço a Deus" (Solo Le Piedo a Dios, Léon Gieco/Ellwanger). O repertório de Raul é eclético e fascinante, começando, por exemplo, com o belíssimo "Cigana Tirana" (parceria com Pery Souza, este também com seu elepê recém-lançado pela Sigla/RBS), dividindo com Jerônimo Jardim a gauchíssima "Milonga" ou a otimista "Companheira Liberdade", enquanto com o carioca Paulinho Tapajós fez a enternecedora "Meu Braço de Violão". Parceiro eclético, capaz de compor desde Milanês a Tapajós, Ellwanger mostra neste "Gaudério" as imensas possibilidades de um repertório que sem deixar de ser regional é universal em sua beleza. Igualmente universal se mostra Jerônimo Jardim (Bagé, 19/11/1944), famoso há 4 anos, desde que Lucinha Lins venceu o I Festival MPB/Shell com o seu belo (mas incompreendido) "Purpurina" (recebendo a maior vaia da história do Maracanãzinho). Em seu terceiro lp-solo ("Terceiro Sinal", SBS/Sigla), uma caprichada produção de Ayrton dos Anjos/Sepé Tiaraju de Los Santos, com direção musical do próprio Jerônimo dividida com este magnífico Geraldo Flach, o encontraremos em sua melhor fase. Liberto, talvez, de imposições que o fizeram apresentar composições menos pessoais em seus discos anteriores, Jerônimo assume aqui seu gauchismo, com a ironia de "Chega Prá Lá", falando em "Índio de Bagé" na disputa da mulher amada. Inspirado ou não em Jorge Luís Borges, "Pinhal" é a poética em alta escala, traduzida em versos como estes: As vezes nota de cristal/As vezes ponta de punhal/O teu amor me faz toa bem/Tanto mal/é meu mal. É meu sal/É fiel/É mortal. Romântico em momentos notáveis - "Maninha" (talvez a mais envolvente faixa) ou "Meni Menina", na música que dá título ao disco, Jerônimo dedica uma bela canção ao momento em que o artista tem que entrar no palco: - Sonho dos atores/de aplausos, sucessos amores. Nas luzes, nas danças, nas cores/acima do bem, acima do mal. Que provoca um frio na espinha/quando toca a campainha. Se o gauchismo bageano de "Chega Prá Lá" e do humor galpeiro de "Comichão" provas da identificação aos pampas, nem por isto Jerônimo deixa de ter uma abertura que pode se chamar carioca, quiçá com uma influência bosco/blancqueana do divertido "Baba do Chico", parceria com Paulinho Tapajós, pelo visto um carioca identificadíssimo com os gaúchos. "Milonga", com Ellwanger, tem também a sua própria interpretação, enquanto em "Clara Clareou", como todas as outras faixas, possibilita que se ouça o piano claro e harmonioso de Flach, também mostrando seus dotes de sanfoneiro na abertura de "Comichão". Um afinado grupo coral - Nyaya, Nariman, Sepé, Bebeto - bons instrumentistas - Tenison Ramos, Bebeto Mor, Márcio Turibino, Ricardo Pereyra, entre outros, nos acompanhamentos. Em "Punhal", além do trumpete de Luís Fernando Rocha, uma participação especial: Zé Caradípia (autor de "Asa Morena", sucesso de Zizi Possi) nos vocais, mostrando sua belíssima voz, o que nos faz aguardar, também, o seu elepê-solo.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
21
24/02/1985

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