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Aramis

O sentimento hispânico de Nascimento e Fagner

Há alguns anos, quando Milton nascimento ainda não era o superstar dos dias de hoje, o jornalista Miltom Eric Nepomuceno, um dos primeiros jornalistas a se preocupar com a divulgação da cultura hispano-americana entre nós, hoje correspondente da Veja em Madri, chamava a atenção para o fato de que o Bituca fundia em sua música visceralmente mineira, muito do calor e emoção da alma espanhola. Até então sem nunca ter saído do Brasil, o autor de "Travessia" já traduzia em suas canções fortes, vigorosas, o calor típico da alma e emoção do povo flamengo. Interessante lembrar esta observação quando agora de (re)encontra um Milton Nascimento liberto de seus hult clos sonoro de 15 anos passados e, paradoxalmente, é um nordestino - o cearense Raimundo Fagner Cândido Lopes, 31 anos, que explode com o mais hispânico álbum já gravado por um compositor / intérprete brasileiro. Nascimento, aos 39 anos, sem afastar-se um milímetro da linha a que se propôs de desenvolver uma obra absolutamente pessoal e brasileira, em "Caçador de Mim" (Ariola, agosto/81), passa uma mensagem de fé, esperança, com uma visão espiritual de sua época - reflexos de suas ligações com a vanguarda da igreja, que vão de dom Pedro Cassaldaliga, o bispo da Araguaia, ao curitibano frei Paulo Cesar, que, em seu penúltimo lp ("Sentinela", 1980), comparecia vocalmente numa das faixas (ele que é excelente violonista e cantor) e assinando um apaixonado texto no encarte. Agora, quando se prepara para a estréia de sua "Missa dos Quilombos", no dia 20 de novembro, data da morte de Zumbi, a ser oficiada por D. José Maria Pires, único bispo negro do Brasil, arcebispo de João Pessoa e co-celebrada por D. Helder, arcebispo de Olinda e D. Pedro Casaldáliga, bispo de São Féliz do Araguaia, MT, Milton antecipa a sua religiosidade, a sua pureza com que vê o mundo, num elepê, como sempre lírico, profundo e consciente. Melhor do que ninguém, Sérgio Sant'Anna, observou que o discurso poético de Milton vem do fundo do coração, palavra tão presente em suas canções e de seus parceiros. Mais do que nunca o canto de Milton - que já sonhava premonitoriamente o abraço com a África, destino histórico do Brasil - interpreta neste disco (sem dúvida, um dos melhores [do] ano) a gente nossa espalhada pelo território, em busca de um espanto de vida. Da primeira [à] última faixa, de uma regravação de "Cavaleiros do Céu" (Riders in the sky, de Stan Jones), que Carlos Gonzaga popularizou nos anos 50 - as novas composições, com o letrista de sempre, Brant, ou os novos parceiros - Francis Hime ("Sonho de Moço") ou Ferreira Gullar("Bela Bela"), o álbum "Caçador de Mim" é também a busca e a ocupação de um espaço sempre mais amplo pelo próprio Milton, "bandeirante, alargando as fronteiras de uma cultura que muitos querem apenas litorânea, de zona-sul e de costas para o País, segundo os verso d e Fernando Brandt em "Notícias do Brasil" (Os Pássaros Trazem), para nós, a melhor faixa deste lp magnífico, intenso - imenso como o talento de Bituca. Ferreira Gullar, o admirável poeta maranhense que o exílio somente tornou mais brasileiro, não é apenas o novo letrista de Milton. O cearense Fagner, que já havia musicado poemas de Cecília Meireles (1901-1964), o que lhe causou processo de suas filhas-herdeiras e condenado há poucas semanas a uma indenização simbólica (pouco mais de Cr$ 100 mil), em "Traduzir-se" (CBS, setembro/81), encontrou no poema de Gullar a básica para sua canção-tema. Gravado em Madri, num clima emocional gritante (Fagner acompanhou a agonia de Glauber Rocha, em seus últimos dias, e a ele dedicou este álbum, também feito a memória de Vinicius, Garcia Lorca, Lennon e ao grande violonista de flamenco Pepe de La Metrona, "Traduzir-se" é um álbum - marco na carreira de um artista polêmico. Desde sua estréia há 9 anos, que Fagner tem sido brigão, explosivo, pretensioso. Apadrinhado no seu lançamento via Philips, por Nara, Chico, Menescal e outros, Fagner passou pela Polygram e Continental, para só na CBS desenvolver um trabalho sólido na CBS, não apenas em termos pessoais mas - principalmente - proporcionando toda uma emergente safra de nordestino, desde jovens que fundem múltiplas (in) formações (Robertinho de Recife, Zé Ramalho, etc.) a cantadores na melhor tradição, como o magnífico Patativa do Assaré, de quem temos um segundo lp na praça, tal como o primeiro, um documento precioso de cultura popular. "Traduzir-se" - com um "z" acoplado ao "c", é um álbum hispânico-brasileiro, no qual Fagner inicia buscando a poesia da portuguesa Florbela Espanca, morta nos anos 30, em "Fanatismo", que termina com a citação a Roberto Carlos (que, consta, iria gravar em seu álbum anual) e passa a seguir a uma composição de Pablo Milanés ("Años"), com a participação de Mercedes Soza, em parceria com José Ortega Heredia e a participação especial do violonista espanhol Manzanita "roqueiriza" um tema clássico de Lorca ("Verde Que Te Quiero Verde"), para encerrar a face A, com uma parceria com Fausto Nilo, como sempre presente em seus trabalho: "Trianera". No lado 2, o contestador Joan Manuel Serrat está presente em "la Saeta", de palavras do poeta espanhol Antonio Machado; depois, em parceria com Manassés (violonista que o acompanha em todas as faixas), está a lírica "Flor de Algodão"; de Rafael Alberti/Richardo Pachón, é "Málaga". Para encerrar, novamente uma volta [à] poesia de Lorca, com "La Leyenda Del Tiempo, musicado por Pachón e com a participação especial de Cameron de La Isla.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Nenhum
Jornal da Música
28
11/10/1981

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