O humor e a emoção no canto de Clara
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 31 de março de 1985
Salvo engano, coube ao sempre arguto e bem informado Ilmar de Carvalho, jornalista catarinense há muitos anos radicado no Rio de Janeiro, o primeiro a observar a importância do surgimento de Clara Sandroni na MPB. Tomando conhecimento de seu disco independente ainda no ano passado, Ilmar não teve dúvidas: incluiu a deliciosa e bem humorada "... do cavalo do bandido" (Nestor de Hollanda Cavalcanti/Hamilton Vaz), gravada por Clara, como uma das dez melhores músicas de 1984, no referendum que divulgamos no suplemento CLÁUDIO.
Ouvindo-se agora o elepê de Clara Sandroni concordamos com Ilmar: trata-se de uma excelente intérprete. Mais do que isto: uma verdadeira criadora musical, que mesmo não se arriscando na composição, produziu um elepê original, alegre, descontraído e extremamente feliz na combinação dos diferentes talentos arregimentados.
A própria programação gráfica de Kaleba, com fotos de Arthur Cavalieri, dá, visualmente, idéia do clima de descontração dos jovens arregimentados nesta produção - quase nos remetendo a clássica imagem que ficou do "Tropicália" (Philips, 1968). Trabalhando com músicos jovens e portanto ainda desconhecidos - mas extremamente competentes - Clara encontrou, entretanto, o clima ideal para as diferentes músicas que escolheu para seu elepê. E justamente a seleção das músicas foi fundamental para que pudesse mostrar todo o seu talento. Começa, por exemplo, com uma introspectiva "Nuvens do Portão" (Luigi Irlandini/Luciana Sandroni), com um belíssimo poema de apenas nove linhas mas imagens perfeitas. "Ladeira da Memória" (Zé Carlos Ribeiro) tem a interpretação dividida com Felipe Abreu e o clima eminentemente paulistano da letra passa perfeitamente. Em seguida, uma canção maravilhosa de Cláudio Nucci/Juca Filho - "Dos Rios", já conhecida da gravação de Claudinho (Odeon, 1984) - que incluímos entre os dez melhores álbuns do ano passado. Apenas nomes de rios da Amazônia, mas formando uma poesia natural e ecológica. Nas duas últimas faixas do lado A, Clara explora o humor: no excelente "Rude Franqueza", de seu irmão Carlos Sandroni e numa nova leitura de "Ovelha Negra", de Rita Lee.
O humor de Nestor de Hollanda Cavalvanti/Hamilton Vaz em "... do cavalo do bandido", abrindo o lado A, não deixa, entretanto de ter um certo amargor crítico em sua letra - realçada no arranjo que valoriza uma participação vocal e tem destaques dos teclados de Bia Mello e o baixo de Paulo Roberto. Inspirado num anônimo "Hynno ao bravo capitão José de Biagi Neto, mais conhecido por "Capitão Fila-Bóia" de batalhão de Fernão Salles", Carlos Sandroni compôs "Filabóia", ao qual Clara deu a interpretação exata - extraindo até uma certa dramaticidade de um personagem que, em outra leitura sonora, seria apenas uma citação picaresca.
Aliás, a capacidade vocal de Clara em valorizar as palavras, enaltece as duas presenças latinas do álbum: o catalão Luís Llach com "La Poesia Dels Teus Ulls" (A Poesia dos Teus Olhos) e, especialmente, "Te Doy Una Cancion" do cubano Sílvio Rodrigues.
Resgatando um antigo sucesso de Carmen Miranda - "Quem é?" (Custódio Mesquita/Joracy Camargo), Clara (e a participação de Kaleba) homenageiam um fase da melhor MPB.
Um disco riquíssimo em termos musicais que se ouve com imenso prazer. Clara Sandroni é uma cantora de vigor, garra e, sobretudo, inteligência que merece ser ouvida com toda atenção. Como seu disco não existe nas desatualizadas lojas da cidade, pode ser solicitada diretamente a produtora - Rua Itamonte, 58, Cosme Velho - CEP 22241, Rio de Janeiro.
PS: Clara é filha de um dos mais admiráveis casais do jornalismo brasileiro: Cícero e Laura Sandroni. Cícero, durante anos editor do "Informe JB", foi idealizador e editor da revistas "Ficção", uma tentativa corajosa de publicar mensalmente uma publicação de contos no Brasil. Laura Sandroni está entre as mais atuantes profissionais na difusão da melhor literatura infantil. Com toda razão, os pais podem ficar corujas dos talentos de seus filhos - Clara como cantora, Carlos como compositor.
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