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Aramis

O filme que quase acertou na milhar

Ironicamente, as três maiores paixões do brasileiro não têm merecido uma transposição visual, no cinema, à altura daquilo que desperta em mais de 100 milhões de pessoas: o futebol, o carnaval e o jogo do bicho. Curiosa esta pobreza filmográfica em torno de temas tão arraigados da cultura popular, capazes de exercitar o imaginário e integrarem-se àquilo que chega às camadas mais simples da população. Ao se voltar para o jogo do bilcho como microuniverso em que se confunde a corrupção policial, a crendice popular, e, especialmente o Carnaval, o jovem (28 anos) Fábio Barreto retomou um tema que, há 33 anos, por coincidência quando também tinha 28 anos, fez de Jorge Ileli um cineasta respeitável: "Amei um Bicheiro", co-realizado por Paulo Wanderley, em plena era das chanchadas da Atlântida se diferenciou pelos seus toque de um cinema neo-realista, carioca, regional e ao mesmo tempo universal em seu lado humano. Retomado em alguns outros filmes, mas sempre indiretamente - como fez Nelson Pereira dos Santos em "Rio, 40 Graus" (55) e "O Boca de Ouro" (62) ou Roberto Farias em "Assalto ao Trem Pagador" (62), o jogo do bicho está ainda, tanto no cinema como na literatura, a espera do clássico que o retrate, em sua densidade dramática. Vindo de uma família cinematográfica, já com um sensível (e premiado) longa-metragem, "Índia, a Filha do Sol" (1981), Fábio Barreto empenhou-se em fazer de "Rei do Rio" (cine São João, 5 sessões) um filme sério, profundo e sensível à temática que se propõe a retratar. De um argumento original de Dias Gomes, que anteriormente já havia sido aproveitado tanto no teatro (o musical "O Rei de Ramos") como na televisão (a telenovela "Bandeira Dois"), o roteirista Jorge Duran, chileno há 13 anos radicado no Brasil, trabalhando com o competente José Joffily Filho e o próprio Fábio, criaram um argumento ágil e de boas intenções. Através da amizade de dois ambiciosos bicheiros - Tucão (Nuno Leal Maia) e Nico (Nelson Xavier), mostram o jogo do bicho de uma forma simpática, na evolução da própria vida política brasileira durante os anos da ditadura. Inegavelmente, com influência de "O Poderoso Chefão", a tentativa de mostrar, paralelamente, a vida familiar de Nico e Tucão, o código de valores pessoais - e a transformação imposta pela marginalidade - o tráfico de drogas, que é repudiado por Tucão, já é, em si, uma proposta ambiciosa. A crítica pretendia a própria estrutura de governo, que permite a formação de policiais (como o delegado Paixão/ Tonico Pereira) e políticos (deputado Farias/ Flávio São Thiago) corruptos não consegue, infelizmente, obter a densidade dramática desejada - não chegando, por exemplo, à profundidade com que Hector Babenco tocou no assunto em "Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia". Mas há - e isto é importante - o empenho de Fábio Barreto em com sinceridade maior, indagar que povo (e País) é este? - conforme bem observou seu produtor artistico, Luís Carlos Lacerda, o que lhe garantiu a realização de um afetuoso, emocional discurso cinematográfico - que arremata a narrativa que ele costura, pacientemente, como alguém que decifra um sonho e o materializa na esperança de tirar a sorte grande. Fábio Barreto procurou traduzir e interpretar em "Rei do Rio", metáforas de amor, poder e morte. Descrevendo, com saudável firmeza o mundo que rola paralelo, independente dos poderes "constituídos", "que não tem governo nem nunca terá", tenta mais do que contar a história de dois ambiciosos marginais, colocar um microuniverso de luta pelo poder. A resistência do bicheiro Tucão a entrar no negócio dos tóxicos é significativa e atual e, conforme depoimento do próprio Fábio, "na ideologia do bicheiro, a droga não cabe, porque faz o consumidor viciar-se e deprimir-se, perdendo cada vez mais a esperança, enquanto o jogo do bicho é baseado na esperança". O jogo do bicho no Brasil está muito arraigado, faz parte da cultura como o samba, a nossa literatura, o nosso cinema e o nosso teatro. É uma atividade que lida com o inconsciente popular: a pessoa acorda, lembra do que sonhou e interpreta o sonho para poder jogar. Ou seja, é quase uma psicanálise popular. Quando a pessoa determina que tem que se lembrar todo dia do que sonhou, está exercendo uma atividade em direção ao seu inconsciente, em função de uma esperança. Há, assim, em "Rei do Rio" - prêmio especial do júri no Rio Cine Festival (agosto/85) - um sentido lúdico e mágico, que se não chega a transpor a ação simplesmente, demonstra liricamente, uma preocupação maior de Fábio Barreto, como, aliás, já havia feito em "Índia, a Filha do Sol". Cinematograficamente, o filme é bem construído. A direção de arte de Anísio Medeiros reconstrói o ambiente kitsch da residência-fortaleza de um bicheiro, e possibilitou que a fotografia de José Tadeu seja irrepreensível. Na trilha sonora, mais uma vez o bom gosto: em "Índia", era Caetano Veloso que contribuía com uma canção belíssima. Aqui, o talentoso Sérgio Sarraceni recupera temas de várias épocas e inclui 4 canções originais da dupla Eduardo Dusek/ Luiz Carlos Góes. No elenco, interpretações seguras de Nuno Leal Maia e Nelson Xavier, presenças femininas agradáveis como da colombiana Amparo Grisales, Andréa Beltrão, Marcia Barreto e mesmo Tessy Callado. Mas nos coadjuvantes, estão as duas maiores interpretações: Flávio São Thiago como o corrupto político e o admirável Milton Gonçalves como o destronado bicheiro Cacareco - declaradamente inspirado na figura do Mestre Natal, da Portela. Milton, hoje o melhor ator negro do Brasil, marcante em atuações como "Rainha Diaba" (de Antonio Carlos Fontoura) cria um personagem que se sobrepõe à história e permanece na retina do espectador. Na utilização do fantástico - inclusive explorando o folclorismo de São Jorge - Fábio Barreto deu a Milton a oportunidade de criar uma interpretação marcante, que lhe valeu o prêmio de melhor coadjuvante no Rio-Cine Festival, no ano passado - mas que, na verdade, mereceria o troféu principal. Um filme brasileiro em sua temática, realizado com seriedade e capricho, "Rei do Rio" tem as falhas compensadas pela inteligência e sensibilidade de seu diretor e da boa equipe reunida. Merece ser visto.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
13
01/10/1986

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