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Aramis

O dia em que Glória Swanson encontrou-se com Woody Allen

Em 1973, num "Botequim", um grupo de pessoas permanecia isolado, enquanto, lá fora, uma tempestade ameaçava a todos. Em 1977, "Ponto de Partida", transpunha para a idade média, numa aldeia perdida no tempo e espaço, o drama de um pai que não aceitava a versão de que seu filho, um resistente contra um sanguinário rei, havia se suicidado. Em "Um Grito Parado No Ar" (1972), uma companhia de teatro, sem recursos, entrava em crise por não poder viabilizar uma produção. O referencial destes três marcos do teatro brasileiro nos anos 70 ajuda a entender melhor a "Pegando Fogo... Lá Fora" (auditório Salvador de Ferrante, até domingo, 21 horas), que marca o retorno de Gianfrancesco Guarnieri aos palcos - como ator e diretor, após 12 anos de interrupção. Embora não tenha a internacionalidade de formar uma trilogia com "Botequim" e "Ponto de Partida", o fato é que "Pegando Fogo... Lá Fora", tem muito em relação a estes textos marcantes, de forte conteúdo político e que, escritos e encenados nos anos mais duros da repressão, buscavam na metáfora a forma de denunciar a ditadura, a tortura e a violência do governo militar. Em "Botequim" - que teve música de Toquinho e trouxe a cantora Marlene numa excelente atuação - era água que formava uma forma simbólica de perigo externo - numa alusão aos tempo duros que vieram após o AI-5. Hoje, sem problemas de censura, "Pegando Fogo... Lá Fora" não deixa também de ser simbólico, ao colocar os personagens num apartamento em São Paulo, enquanto, lá fora, há incêndios que não conseguem ser debelados. Um clima de desespero que, indiretamente, passa um traço crítico do Brasil aqui e agora. Aos 55 anos, 31 de teatro, Gianfrancesco Guarnieri fez neste seu novo texto uma síntese (dilacerantemente amarga, embora com muito humor) de uma longa vivência cultural e política. Como o personagem que interpreta (Pietro Lukas), um diretor de teatro, dividido entre duas paixões, profundamente descrente dos valores tradicionais, Guarnieri recheia seu teto de referências ao próprio mundo cênico - lembrando Cacilda Becker (da peça "Pinga Fogo") ou a sua própria peça, "A Semente" (1961) - justamente seu terceiro texto ("Eles não usam black-tie", 1958; "Gimba", 1959), nos anos em que o Teatro de Arena, do qual foi um dos fundadores, tinha uma atuação política. (Aliás, o próprio Arena - com sua linha crítica feroz não deixa de ser rapidamente satirizado em certo momento). Como um puzzle em que o humor e reflexão se alternam, numa montagem em que Guarnieri exorciza fantasmas, ilusões, projetos políticos e decepções ou amarguras sofridas ao longo de mais de 30 anos de responsável militância ideológico-cultural - "Pegando fogo... Lá Fora" é extremamente bem construída - o que não surpreende, já que toda sua obra sempre foi desenvolvida de uma forma artesanalmente perfeita. Sem cair em didatismos e posições maniqueístas, livrando-se das gorduras de um teatro amargurado em rever posições do passado ou criticar partidos ou posições políticas, Guarnieri escreveu (e interpreta) uma peça que conquistou o público (prova disto é que foi vista por mais de 40 mil espectadores entre outubro/dezembro, no Teatro Cultura Artística de São Paulo) e que, proporcionalmente a informação do elemento respectivo, traz maiores elementos de análises e reflexões. xxx Aquilo que poderia ser uma visão trágica do outono na vida de uma envelhecida atriz, Emanuelle Cândida About (Myriam Muniz), em sua neurose pretendendo estar vivendo em Manhattan - quando, na realidade vive na São Paulo poluída, ameaçada por incêndios, num clima de "No Mundo de 2020" - é o plot para que se discutam, entre 4 personagens, vários enfoques de uma realidade que não fica no vazio. A velha atriz - numa criação esplêndida de Myriam Muniz, lembrando a Norma Desmond (Gloria Swanson) em "Crepúsculo dos Deuses" (Sunset Boulevard, 1950, de Billy Wilder) parece encontrar um Woody Allen, entre o humor patético e o drama de uma solidão assassina - no pianista Eugênio Tosta (Pietro Maranca). A estes dois personagens, se contrapõe a juventude e rebeldia de Ceci Pereira (Célia Helena), atriz de uma nova geração, segunda esposa de Pietro Lukas - ex-marido de Emanuelle, que provoca o encontro das duas ex-mulheres, para uma catarse de sentimentos. É justamente o dia em que Emanuelle faz aniversário - talvez 60 anos ou mais, embora, só assuma os 55. Uma explosão de sentimentos refreados, sonhos e frustrações deságua em momentos de ternura e emoção, mas sempre pautado por um astral bem humorado, no qual o drama que se ensaia (como o suicídio final) revela-se, no momento seguinte, uma piada agridoce. Sente-se neste texto o amadurecimento de Guarnieri como autor. Como ator, desnecessário falar, pois mesmo afastado dos palcos por tantos anos não deixou de trabalhar - embora voltado mais à televisão (entrecortado com sua experiência como secretário da Cultura do município de São Paulo na administração Mário Covas, que agora apoia, entusiasticamente, para a presidência da República). Embora com direção original de Celso Nunes, a encenação para esta remontagem que será levada a várias cidades (a excursão começou por Londrina, na semana passada) foi remarcada pelo próprio Guarnieri, também um experiente metteur-en-scène desde os tempos do Arena. Assim como Célia Helena é uma revelação como atriz (embora já tenha feito mais de 10 peças em São Paulo, a maioria de teatro infantil, esta é a sua grande chance), o pianista Pietro Maranca, em sua primeira experiência como ator, surpreende. Compõe um personagem silencioso, que se expressa mais ao piano (aliás, uma belíssima seleção musical, que embala a peça com temas conhecidos - do clássico ao popular) e, assumidamente, lembra Woody Allen. Um texto inteligente, direção harmoniosa e, sobretudo, um elenco irrepreensível - e mais a importância de ter o que falar e oferecer múltiplos aspectos para reflexão, (inclusive o longo monólogo de Pietro Lukas ao final, enrolado na bandeira do Brasil) fazem de "Pegando Fogo... Lá Fora" um espetáculo atual - para os dias deste Brasil de final de governo Sarney - tão importante quanto fora as denúncias que o mesmo Guarnieri, corajosamente, colocou em "Botequim" e, especialmente "Ponto de Partida" (primeira peça a abordar a morte do jornalista Wladimir Herzog, embora em forma figurada). É bom ver que Guarnieri continua em sua melhor forma! LEGENDA FOTO - Pietro Maranca, Myriam Muniz, Célia Helena e Gianfrancesco Guarnieri: um quarteto competente numa peça significativa - "Pegando fogo... lá fora". No auditório Salvador de Ferrante até domingo.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
21/04/1989

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