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Aramis

Na "Rosa" de Allen, um hino de amor ao cinema

"Não existe uma realidade, mas ilusões nas quais acreditamos, pois a ilusão é muito mais real que a realidade" (Pirandello, em "Seis Personagens à Procura de um Amor"). Só alguém que amasse profundamente o cinema poderia realizar um filme com "A Rosa Púrpura do Cairo" (Cine Palace Itália, 2ª semana). E esse alguém só poderia ser Woody Allen, 50 anos de idade (no próximo dia 1º de dezembro) e 20 anos de atividades no cinema (o roteiro de Woody para "O que há, gatinha? / What's News, Pussycat", de Clive Donner, é de 1965). "The Purple Rose of Cairo" é daqueles filmes-mágicos que comportam múltiplos enfoques. Pode ser visto - e assim o é, para a maioria do público - apenas como simples entretenimento, dentro da linha que o espectador se acostumou a ver nas obras de Allen, a mais talentosa presença do cinema norte-americano dos últimos anos, surpreendendo sempre a cada nova realização. Mas também pode - e deve - ser visto como um filme em que, na ficção mágica de uma história de toques surrealistas (o personagem deixa a tela apaixonado pela espectadora fanática, que revia a fita pela 5ª vez), se coloca a relação da magia / sonho do espectador em relação ao cinema, como catalisador de frustrações e desejos reprimidos, que o público recebe, com empatia, das imagens, nos retângulos iluminados. O sempre bem informado Sérgio Augusto lembrou, em apreciação sobre "A Rosa Púrpura do Cairo", as relações desse filme com um conto do próprio Allen, publicado há 8 anos na revista "New Yorker" ("O Episódio Kugelmass"). Naquele conto, um professor judeu de meia-idade, Sidney Kugelmass, invadia, magicamente, as páginas do romance "Madame Bovary", de Gustave Flaubert e tinha um caso com Emma Bovary, trazendo-a da modorrenta Yonville até o hotel Plaza, em Nova Iorque. Em "A Rosa Púrpura do Cairo", a ação se passa em Nova Jersey, nos anos 30, época da grande depressão. Para Cecília (Mia Farrow), Humilde garçonete que sustenta o marido, um beberrão desempregado (Monk /Danny Aiello), que a trai com outras mulheres e ocasionalmente a espanca e explora, os únicos momentos de felicidade são aqueles que ela passa no cinema Jewell. Ali ela vê e revê "A Rosa Púrpura do Cairo", um exemplo daqueles filmes escapistas que o RKO produzia na década de 30 (8fantasias cheias de exotismos e ociosos endinheirados), no qual um aventureiro, Tom Baxter (Jeff Daniels), tal como um Indiana Jones de 5 décadas passadas, sai de pesquisas nas tumbas de faraós no Cairo para a noite novaiorquina, entre apartamentos luxuosos e o Copacabana com sua música jazzística. E, numa sessão, o herói Tom Baxter sai da tela para viver com a frágil e humilde Cecília (uma espécie de Lilian Gish da depressão) acalentados sonhos de amor. Os personagens do filme dentro do filme - que não podem continuar a história porque o galã os abandonou discutem com a platéia irritada e também começam a rebelar-se contra o roteiro e seus papéis. Entram em cena sem ser chamados, extravasam velhos ressentimentos políticos, com um colega de elenco tido como comunista, e um veterano ator de composição, estereotipado como maitre e garçom aproveita para fazer o que sempre sonhou: dançar sapateado diante da câmara. As citações do filme são inúmeras e talvez a falta de conhecimento de quem sejam os mencionados faça com que a platéia menos atualizada deixe de entender um pouco do humor verbal. Exemplo, ator Rosco e "Fatty" Arbuckle (1887-1933) - o Chico Bóia, é lembrado como protagonista de um escândalo famoso na época, que não é explicado (referia-se ao seu envolvimento na morte de uma adolescente durante bacanal em Hollywood). Já o personagem que o ator Gil Sheppard (também Jeff Daniels) iria fazer em próximo filme, seria Charles Lindbergh (1902-1974), que, a bordo do The Spirit of St. Louís, entre 20 e 21 de maio de 1927, cruzou o Atlântico, voando de Nova Iorque, a Paris e transformando-se em herói nacional (só em 1957, a epopéia seria levada à tela, com James Stewart, em "A Águia Solitária", direção de Billy Wilder). xxx É imensa a empatia que "A Rosa Púrpura do Cairo" estabelece com o público, especialmente aquele que ama o cinema. O cinema de bairro - o Jawell lembra os Jóia de tantas cidades, nos quais a bilheteria sabia o nome da gente e o gerente era um amigo conhecido. O mergulho no inconsciente da ilusão cinematográfica não busca toques psicanalísticos mas fica no sonho de cada um de nós. Afinal, quem não desejou, em certos momentos, mergulhar no universo dos filmes, seja nas aventuras em países exóticos, nos momentos de sofisticação em ambientes luxuosos e, principalmente, no love story com a mocinha ou o galã tão amado. Tudo isso compõe essa matéria mágica que o russo Ilya Ehrenburg chamou, um dia ao visitar Hollywood, de "A Usina dos Sonhos" e que tem em Woody Allen uma das pessoas que melhor souberam condicionar, em uma série de filmes enternecedores, nos quais o fantástico convive com o real. Lembrando o que disse Wilson Cunha "Jornal do Brasil", 27/9/75), "A Rosa Púrpura do Cairo" coloca algumas questões fundamentais da coisa fílmica, levando as câmeras às personagens aprisionadas no pequeno espaço da tela - uma existência tão fugidia quanto se mantenha acesa a chama do projeto. "Não apaguem a luz", [grita] um dos atores personagens, "se não nós sumimos". Com extrema sensibilidade, Allen envolve cada uma dessas personagens de uma aura transcendente. O envolvimento de "A Rosa Púrpura do Cairo" é total. O uso do preto-e-ebranco do filme - na tela se contrapõe às cores da ação dos anos 30, envolvidas numa trilha sonora perfeita, de Dick Hyman, que abre, nos créditos, com a Voz de Fred Astaire deslizando versos emocionantes ("Heaven/ I'm in heaven/ And my heart beats/ that I can heardly speak..."). No final, com um toque de melancolia, sem o happy end sonhado por Cecília, o mesmo Astaire, ao lado de Ginger Rogers, volta a se ouvir em "Cheak to Cheak" de "O Picolino" (The top Hat, 1935, de Sandrich), em imagens que fecham um ciclo. Mia Farrow nunca esteve tão bem num papel como nessa humana e emocionante Cecília. No elenco reaparece um ator veterano, Van Johnson, 59 anos, que com o rosto sardento marcou tanto as produções da MGM da década de 50. Jeff Daniels, um novo ator, na dupla interpretação de Tom Baxter /Fil Shepherd, compõe muito bem. A fotografia de Gordon Willis é perfeita. E na trilha sonora, ao lado da maravilhosa música instrumental dos anos 30, clássicos como "Cheek to Cheek" (Irving Berlin), "I Love My Baby, My baby Loves Me" (Bud Green/ Harry Warren) e "Alabamy Bound" (Ray Henderson/ B.G. De Sylva/ Bud Green). Realmente, muitos filmes-declarações de amor ao cinema já foram feitos. Mas dificilmente alguém fará um mais belo do que essa obra-prima de Woody Allen. LEGENDA : Personagens múltiplos entrecruzam-se em "A Rosa Púrpura do Cairo", obra-prima em exibição no Cine Palace Itália.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
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Tablóide
22/11/1985

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