Login do usuário

Aramis

Na longa viagem, a guerra de todos (I)

Pode parecer um atrevimento, mesmo uma heresia, comparar "Apocalypse" (Cines Lido / Plaza) a "...E O Vento Levou". Quatro décadas separam a superprodução de David F. Selzenick (1905-1979) da realização de Francis Ford Coppola e, exceto a grandiosidade do espetáculo e ambos terem, por fundo, a guerra, pouco há em comum entre os dois. Mas, com um pouco de imaginação, é possível entender que o que significou a transposição do romance de Margaret Mitchell (1900 - 1949) para o cinema, há 40 anos passados, repete-se em "Apocalypse Now", "Gone With The Wind" foi um filme basicamente de produtor: vários livros já foram escritos sobre sua realização, as brigas, as intrigas - como, por exemplo, Clark Gable (1901 - 1960), então o "Rei" da MGM, irritado com o destaque que George Cukor, então com 50 anos e 9 de carreira estava dando às personagens femininas, conseguiu afastá-lo da direção. Sam Wood (1883-1949) dirigiu algumas [seqüências], mas seria Victor Fleming (1883-1949), que o concluiria, merecendo (?) inclusive o Oscar de melhor diretor, "Apocalypse", ao contrário, é, talvez, uma das mais pessoais obras do cinema contemporâneo, onde Coppola investiu US$ 30 milhões, dos quais US$ 14 milhões de recursos próprios - comprometendo inclusive empresas (uma estação de rádio, uma revista, imóveis, etc) que possuía, graças aos lucros que possuía, graças aos lucros que obteve com as duas partes do "O Poderoso Chefão". Se não fosse a disposição de Coppola em levar até o fim o projeto, seria mais um dos filmes inacabados (como "A Esperança", que Frede Zinnemann tentou realizar a partir da obra de André Malraux, há 13 anos passados) e frustrados. A cobertura que "Apocalypse Now" vem recebendo desde que foi iniciado, há 4 anos, nas Filipinas, com inúmeros problemas de produção - e que cresceu este ano, após o filme ter dividido com o "O Tambor", Palmas de Ouro do Festival de Cannes (1), o lançamento nos EUA, de forma parcimoniosa, com a esperança de que a indicação (e possível conquista de alguns Oscars) pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, em fevereiro próximo, melhore as bilheterias, são aspectos que não podem ser dissociados de qualquer registro em torno deste filme. Esta grandiosidade, as características de uma superprodução com todas as naturais dificuldades, aproximam, em termos, "Gone With The Wind" - um filme que o tempo não levou, haja visto que continua a resistir a periódicas reprises anuais (agora ampliado para cinemascope) de "Apocalypse". Mas se a produção de Selzenick, em sua longa metragem, tinha personagens glamorizados, "Apocalypse" é visceral em seu corte: ao invés da guerra da secessão, entremeada de intrigas amorosas e conflitos entre Rhett Buttler (Clark Gable) e Scarlet O'Hara (Vivien Leigh, 1913 - 1967), o filme de Coppola leva mais adiante, com um mergulho que jamais o cinema experimentou, sobre a loucura da guerra, os conceitos de civilização, justiça, normalidade. Raras vezes uma superprodução consegue manter o sentido individual, intimista, de seus personagens, perdendo-se na multiplicidade de personagens e detalhes. Um dos poucos casos em que a superprodução não prejudicou a visão político-crítica foi quando Staley Kubrick, há 20 anos, levou ao cinema "Spartacus", de Howard Fast (2). Agora Coppola também recorrendo não apenas a uma obra literária - "Heart of Darkness" (No Coração das Trevas", 1902) de Joseph Conrad ( Teodoro Josef Konrad Korzeniowski, 1857 - 1924) - mas também a T.S. Ellioti (The Hollow Men" e "The Wastland"), Jesse Weston ("From Ritual To Romance") e, James Frazer ("The Goulden Dough") - conseguiu um resultado perfeito. O primeiro tratamento de "Heart of Darkness" foi feito há 10 anos por John Milius, um dos roteiristas mais conceituados da década que se encerrou ("Jeremiah Johnson", de Sidney Pollack; "Roy Bean", de John Huston) e também - "Dellinger" (73) e O Vento e o Leão" (75). Mas a este primeiro script, Coppola, um seguro roteirista, trabalhou, dando uma plena fundamentação literário-teórico-simbólica, para fazer de "Apocalypse" realmente um filme para ficar. Do muito que já se escreveu - e muito mis ainda se escreverá a respeito - acredito que um dos textos mais esclarecedores, e capazes de auxiliar o público a entender melhor especialmente os seus últimos 30 minutos, foi o que John Tessitore, publicou há 3 meses no "The New York Times" (21/10/79). Tessitore, salientou que no final de "Apocalypse", a câmara, casualmente, quase que a esmo, vagueia por uma cabana em desordem, passando por alguns livros, jogados de forma a sugerir terem sido usados recentemente. Um desses livros é "The Golden Bough", de James Frazer. Não se trata de nenhuma coincidência. Na verdade, este livro contem a chave para se entender o final do filme, que confundiu e incomodou inúmeros críticos, e, por certo, está fazendo centenas de espectadores saírem dos cinemas, um pouco frustrados. Linearmente, "Apocalypse" contaria a história do capitão Benjamin Willard (Martin Sheen), um oficial americano enviado rio acima até o Camboja durante a guerra do Vietnã, para matar um oficial superior, o coronel Kurtz (Marlon Brando), que teria enlouquecido e se tornado uma espécie de rei de uma região inóspita. Após uma longa e sangrenta viagem, Willard chega ao reduto de Kurtz apenas para descobrir que, apesar dos brutais e selvagens métodos de Kurtz (o chão está coberto de corpos e cabeças decapitadas), ele simpatiza profundamente com o oficial renegado - um homem de coragem e integridade, curriculum extraordinário, e que, como ele próprio, ficou doente devido à estrutura político-militar, baseada em mentiras. Na cena final, Willard defronta-se com Kurtz sozinho e o mata com uma faca. Coppola chegou a fazer 3 finais diferentes: num, Willard substituiria a Kurtz no místico mundo criado na selva de Camboja; outro, a aviação viria destruir o local e, um outro - que é o utilizado na versão em exibição no Brasil - após assassinar Kurtz, retorna a "civilização" - mas profundamente transformado em seu interior. No romance de Joseph Conrad, Marlow, um jovem capitão de navio é contratado por uma empresa de borracha, para levar um grupo de europeus ambiciosos através do Rio Congo até o posto central da companhia, um campo dirigido por um agente chamado Kurtz Marlow descobre que este Kurtz sofrera uma transformação devido aos seus inúmeros anos de isolamento e que, homem de cultura e ideais, torna-se primitivo e bárbaro, um verdadeiro Deus entre os nativos. Ele descobre ainda, em conversa com um russo "bufão" (transformado por Coppola em um excêntrico fotógrafo interpretado por Dennis Hopper), que Kurtz conseguiu e preserva a sua posição através de "métodos não muito saudáveis": isto é, força e por "rituais indescritíveis". No romance de Conrad, Marlow se esforça em levar Kurtz de volta a Inglaterra e sua morte é anti-climática, resultado, pelo menos, ostensivamente, de uma febre. Em "Apocalypse" a missão de Marlow é cumprida - apesar de seu profundo conflito. E isto é explicado através de "The Golden Bough", obra que tem como subtítulo, "Um Estudo em Mágica e Região". Originalmente publicado em 12 volumes, de 1890 a 1915, é mais conhecido e lido em seu único volume, editado em 1922, conforme é mostrado no filme. A sua importância para o pensamento do século XX pode, dificilmente, ser exagerada e esse livro deve ser classificado ao lado da sobras de Darwin e Freud. A única pergunta que continuamente guiava a investigação de Frazer pode ser assim formulada: "Por que foram os supostamente reis divinos tão [freqüentemente] assassinados pelas mãos daqueles que preferiram adorá-los?". Em busca de uma resposta, Frazer, explora o que denomina de "Simpático", ou, mais especificamente, de "Mágica Contagiante" (a Lei do Contacto), que é simplesmente baseada em uma errônea associação de idéias, por onde acredita-se que existe uma "simpatia mágica" entre um homem e qualquer parte cortada de sua pessoa, ou mais diretamente ligado ao nosso interesse, entre um homem e o outro. Dessa noção fundamental de "Mágica Contagiante" nasce o que é provavelmente a mais influente conclusão de Frazer: a prática que geralmente tem sido referida como "o assassinato do pai". Frazer esclarece que quando o divino rei é morto por alguém que é mais forte ou astucioso, os poderes de divindade que foram do rei são simpaticamente e contagiantemente transferidos do vencido para o vencedor. Aparentemente hermética e complexa a análise que John Tessitore faz a propósito das raízes literárias de "Apocalypse", são importantes para quem se propõe a ver neste filme algo mais do que uma simples "fita de guerra". A guerra - em toda sua brutalidade, loucura, insanidade - está presente, da primeira a última cena, mas justamente a visão interior, a longa viagem que Willard faz para cumprir uma missão absurda - que muitos chegam a comparar a uma "viagem" lisérgica, pelo próprio interior existencial - é que dá a "Apocalypse" a sua maior grandiosidade e torna um filme de visão obrigatória, análise, reflexão e, naturalmente, abrindo-se a interpretações das mais variadas (continua). (Notas) (1) Há um mês, a romancista Françoise Sagan, que presidiu o júri do último festival de Cannes, denunciou o organizador da mostra, de ter pressionado o júri para premiar "Apocalypse", quando o júri estava disposto a dar a "Palma" apenas a "O Tambor". (2) Spartacus (-?-71 a. C.), chefe de escravos revoltados, foi gladiador, evadiu-se em 73 e formou na Itália do Sul, uma tropa de escravos que havia sublevado e se instalou no Vesúvio. A novela de Howard Fast, inspirada em sua vida, foi levada ao cinema em 1960, numa produção de Kirk Douglas (também intérprete do personagem), com direção de Stanley Kubrick. O roteiro foi de Dalton Trumbo - um dos melhores do cinema, vítima do macartismo.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Nenhum
Tablóide
10
06/01/1980

Enviar novo comentário

O conteúdo deste campo é privado não será exibido publicamente.
CAPTCHA
Esta questão é para verificar se você é um humano e para prevenir dos spams automáticos.
Image CAPTCHA
Digite os caracteres que aparecem na imagem.
© 1996-2016. tabloide digital - 35 anos de jornalismo sob a ótica de Aramis Millarch - Todos os direitos reservados.
Desenvolvido por Altermedia.com.br