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Aramis

Na Batata. Moreira fala do mundo musical dos cariocas

A música como flash da sociedade? Eis um tema que ainda está a espera de interpretações e estudos de profundidade em termos de estudos socio-antropológicos-musicais e nesta época em que tantos jovens professores que se voltam a temas populares para suas dissertações de mestrado (e doutorado) aqui fica a dica. Qualquer estudo a respeito teria que dar um grande destaque a picardia de (Antônio) Moreira da Silva, 88 anos completados no dia 1º de abril, mais vigoroso e rijo do que nunca, em sua malandragem sonora e tipicamente carioca. Em sua linha direta de picardia musical está outro Da Silva - o Bezerra, pernambucano de nascimento aculturou-se tão intimamente que praticamente conduz hoje a flama da música das classes mais humildes do Rio de Janeiro. De smoking como percussionista da antiga (hoje desfeita) Orquestra da Globo, Bezerra veste e calça branca e a camisa listrada de malandro para, nos morros cariocas, se tornar uma espécie de arauto musical do outro lado das malandragens. Ao longo de seus discos - os primeiros pela Tapecar, há anos já na Barclay (ex-RCA), da qual é um dos bons vendedores de discos, estão personagens marginalizados e códigos de comportamento, como argamassa de músicas suas ou de outros compositores populares. Autêntico fotógrafo de uma realidade, Bezerra da Silva, com seu misto de social e (amargo) humor oferece em sua obra um material riquíssimo para se entender a transformação do Rio de Janeiro nestes últimos anos de escalada em violência. Seu novo lp - "Eu não sou Santo", no qual aparece na capa, revólveres nas mãos e no cinto, como crucificado numa cruz defronte uma favela (mesma imagem repetida na contracapa), reúne novos exemplos desta ironia de uma cidade que de maravilhosa passou a ser uma das mais violentas do mundo. A começar na faixa "Quando o Morcego doar Sangue" (Cosme Diniz/Rosemberg), Moreira canta que "Para tirar meu Brasil dessa baderna/Só quando o morcego doar sangue/E o Saci cruzar as pernas". Gravador em punho, ganhando a confiança da gente do morro, Moreira busca, como repórter identificado culturalmente ao seu universo, os autores em zonas mais humildes, encontrando sempre as ironias e críticas ferinas aos quais ele dá forma, como nas queixas do "Poeta Operário" (Romildo/Ney Alberto), que reclamam "E o poeta é quem vai lavando a cruz/Ganha mais quem nada faz/Menos ganha quem produz/(...) Só sucesso não consola/Pois só ganha mixaria/E o grosso que vai para o bolso/Do Ecad em parceria". Praticamente todas as faixas gravadas por Bezerra da Silva oferecem momentos para atenção/reflexão, pois nos compositores que busca - ou em suas próprias composições (como "O Filho de Jurema") estão refletidos personagens e ensinamentos do código de honra de uma sociedade de características especiais. Desta vez, foi uma parceria de Adelsonilton, Nilo Diase Criolo Doido, "Eu Não Sou Santo" que Moreira escolheu para dar título a este disco, mas como uma auto-explicação a quem possa estranhar sua identificação a rodas vistas com desconfianças e preconceito: "Eu não sou santo/Se eu fosse santo/Estava no altar/Um olho no padre e outro na missa/Só quando colher-de-chá". xxx Um outro exemplo de música flagrando a realidade suburbana está num inesperado disco que poderia até passar desapercebido: "Conselho" com o disc-jockei Batata, identificado na divulgação da música funk - e portanto, aparentemente distante de uma realidade pobre (embora, em suas origens, o funk, como o reggae, rap e outros ritmos negros tenha profundas conotações sociais). Grande vivência nos meios musicais de bailes suburbanos - aos 10 anos já animava bailes em Niterói e aos 21 estreava como DJ, hoje fazendo seis bailes em playback por fim de semana - Batata participou do pioneiro "Funk Brasil" que vendeu 160 mil cópias e daí surgiu seu contrato de 3 anos com a Polygram, pelo qual saiu agora "Conselho", cujas músicas identificam, sempre com ironia, os problemas da dura realidade dos moradores dos subúrbios e favelas. Por exemplo, "Feira de Acarai", parceria do DJ Marlboro e DJ Pirata, é um dos destaques: "Tinha uma promoção na barraca do Mané, se alguém comprasse tudo ele dava sua mulher/Lá tem gente boa e malandro adoidado/já venderam prum otário o morro do Corcovado". Já na faixa-título, "Conselho", Batata fala das difíceis condições de vida das pessoas de baixo poder aquisitivo - Vou ralar pra quê? Se a cor do dinheiro ninguém vê". "Nojento" é uma crítica as promessas feitas durante as campanhas eleitorais de memória curta que reelegem os mesmos candidatos - quando "vem nova eleição você vota no nojento". Se Moreira da Silva em seu samba-de-breque foi o pioneiro no flagrar o comportamento (dito) marginal e Bezerra procura entender os dias de violência deste Rio que já foi maravilhosos, o DJ Batata, entre seus "melôs" (Saboneteira, Gol, Bêbado, Funk Brasil etc.), também dá o seu recado social - menos acre mas igualmente irônico.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Música
7
30/09/1990

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