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Aramis

A música de Sérgio Ricardo, um operário - artista em construção

FASCINANTE gênero musical, a trilha sonora dispõe hoje de um catálogo internacional dos mais expressivos, acrescido à cada mês de novos e importantes títulos - não apenas de produções recentes mas, principalmente, com as músicas dos grandes filmes do passado - num prato dos mais apetitosos aos colecionadores, que são obrigados a recorrer aos (caros) [álbuns] importados, haja [vista] que é tímida a iniciativa de nossas gravadoras em colocarem tais lançamentos ao alcance do público brasileiro. Por exemplo, a RCA Victor, que ainda na última temporada fez uma dezena de lançamentos de colocar água na bôca dos fãs do [gênero] ([músicas] dos filmes de Max Steiner, dos filmes de Errol Flynn, de Alfred Newman) etc, há anos não faz um único lançamento internacional de música [cinematográfica]. Em sound track original. A Phonogram é bastante parcimoniosa neste campo e só há pouco aqui colocou um [álbum] duplo com temas das grandes produções da MGM - de cuja fase de ouro, existe, em maravilhosos [álbuns], todas em trilhas sonoras originais de seus [inesquecíveis] musicais. Em termos de filmes brasileiros, também foram poucos os que até hoje foram acompanhados com as edições de trilhas sonoras, mas isto se explica: com poucas exceções, poucos de nossos filmes tiveram sound tracks criadas especialmente, de [nível] a merecerem tais produções - que a rigor nunca [atraíram] as gravadoras e quando o filme é [concluído] o seu realizador está tão endividado que nem se preocupa com este detalhe - da maior importância para auxiliar a divulgação de sua fita, mas que acaba sendo esquecido. Por isto, é com alegria que se registra a edição em lp da trilha sonora de "A Noite do Espantalho" (Continental, SLP 10.154, setembro/74), não só por se tratar da música original de um dos mais aguardados filmes do ano - já representou o Brasil em mostras [internacionais] e lançado na GB há 3 semanas, mas, principalmente, por ser criação do compositor mais sensível dos verdes anos da Bossa Nova, autor de uma obra [impecável] e que merece todas as adjetivações: [SÉRGIO] RICARDO (João Lafti, paulista de Marília, 42 anos). Em 19 anos de carreira - foi "descoberto" em 1955, por Maysa, quando atuava como pianista na boate Dominó, no Rio - Sérgio Ricardo é um dos compositores-músico-cantores que mais tem [evoluído], no sentido positivo de sua carreira: após o antologicamente marcante "Não Gosto Mais de Mim" (Odeon, MOFB-3168, 1962), produção de Aloysio de Oliveira que está como um marco definitivo na Bossa Nova, [a] tal ponto que deverá ser reeditado agora pela Evento e seu segundo lp ("Depois do Amor". MOFB 3229), já produzido por Ismael Corrêa - e onde ao contrário, do primeiro disco cantava [músicas] de outros autores, Sérgio Ricardo só voltaria a gravar em 1964, para a Elenco, de Aloysio de Oliveira ("Um Senhor Talento", ME-7). Mas já sentia-se neste terceiro disco, uma diferença no enfoque dos temas: ao invés da linguagem intimista, individual de "Não Gosto Mais de Mim", uma abertura para os temas sociais, preocupação que marcaria, a partir de então toda sua obra. [Atraído] para o cinema ao musicar "Deus e o Diabo na Terra do Sol" de seu amigo Glauber Rocha (editado pela Forma e relançado posteriormente pela Phonogram), Sérgio faria após sua primeira experiência [cinematográfica] ("Menino da Calça Branca", 1963), um sensível longa-metragem, neo-realista em sua estória de pessoas simples e humanas: "Esse Mundo é Meu", cuja trilha sonora também sairia pela Forma, num [álbum] de capa dupla, extremamente bem cuidado e que infelizmente teve pequena vendagem. Viagens ao exterior (na [Síria], chegou a fazer um premiado documentário: "O Pássaro na Aldeia"), polêmicas participações em festivais de MPB (Record, 67, "Beto Bom de Bola", onde quebraria o violão em protesto [às] vaias do público que não entendeu a beleza de sua música, um verdadeiro tema-roteiro sobre a vida de Garrincha) e assim só em 1967, Sérgio voltaria a gravar; "A Grande Música" (Philips, R 765.012), onde [incluía] além de novas músicas de fundo social e influência [folclórica], também temas criados para a peça "O Coronel de Macambira" (este lp teve capa de Ziraldo, que fez ainda o [belíssimo] texto de contra-capa). Novo intermezzo [cinematográfico] para a realização do filme "Juliana do Amor Perdido" (São Paulo, 1969) e pela pequena gravadora Equipe, de Osvaldo Cadaxo, sairia talvez o seu lp mais denso: "Arrebentação" (maio/71), onde incluiria alguns temas de "Juliana" e músicas da mais expressiva elaboração "Jôgo de Dados", "Labirinto", "Analfaville" etc.), a tal ponto que o acadêmico Antonio Houaiss faria a apresentação do disco, afirmando que "sua música é para mim um bem tão grande, que, para ser maior, só lhe poderia desejar que o fôsse também de todos os brasileiros". Preocupado com o lançamento de seu filme e novas transas [cinematográficas] - realmente uma vocação tão grande quanto [à] música, passaram-se quase dois anos para que Sérgio voltasse a gravar, desta vez na Continental (SLP 10093), dezembro/72), acompanhado por um grupo instrumental de grande expressividade - Piri, Fred, Cássio, Franlin e Paulinho, e com o lp trazendo uma [satírica] capa criada por Carlos. Mergulhado na produção de seu mais adiado projeto - "A Noite do Espantalho - cujo roteiro já havia feito em 1967, só agora, com o lançamento deste [musical] nordestino rodado em Nova Jerusalem, no Agreste de Pernambuco, município de Caruaru, onde o jornalista Plinio Pacheco realiza anualmente a maior representação pública da vida paixão e Morte de Cristo, só agora temos o prazer de reencontrar um disco de [Sérgio] Ricardo. Profundamente independente, consciente politicamente, dedicado a uma obra das mais sincera visão cultural de seu País, [Sérgio] Ricardo é um dos poucos criadores que preferiu trocar uma carreira fácil, de sucesso financeiro assegurado, por um caminho áspero, difícil em termos financeiros, mas que lhe assegura uma perfeita consciência artística. Assim ele dificilmente se apresenta em televisão, fez poucas temporadas teatrais e prefere cantar para universitários e pessoas simples, de tal forma que até hoje ainda não pode acertar uma temporada em Curitiba. Com uma obra musical imensa, rica e da maior beleza - onde se contam desde os [românticos] trabalhos da fase inicial ("Pernas", "Não Gosto Mais de Mim", "Máxima Culpa", "Zelão", 'Bouquet de Isabel", "Ausência de Você") a[s] [cinematográficas] parcerias (Ruy Guerra, Glauber Rocha), Sérgio Ricardo sempre tem se preocupado com uma linguagem brasileira, falando das coisas de nosso País, e nosso povo, buscando nas [legítimas] influências [folclóricas] novos temas e abertura para uma obra em constante evolução - que ele, como operário consciente está a construir com amor & honestidade intelectual. Há muito achamos que a obra de [Sérgio] Ricardo - [musical e [cinematográfica], está a merecer um longo ensaio, cujo ante-projeto já tentamos e publicamos (Revista "Quatro Estações", verão de 1971), mas para cuja elaboração haveria necessidade de uma pesquisa de maior profundidade e um indispensável (longo/pessoal) depoimento do próprio autor. Esta admiração pelo trabalho [musical] de [Sérgio] Ricardo só aumenta com a audição da trilha sonora do filme "A Noite do Espantalho", pois independentemente da visão da fita, sente-se nos 23 temas a força e brasilidade desta obra segura do grande criador. Convocando um grupo de excelentes instrumentistas e cantores - a dupla pernambucana Geraldo Azevedo e Alceu Valença (que há 2 anos fez um notável lp na Copacabana, CLP 11.695), Fred, Cássio, Piri-Lu, João Cortez, Ana Lúcia de Castro, Joana de Fazenda Velha e Joabe Teixeira, além de sua própria e discreta intervenção em oito faixas, [Sérgio] Ricardo criou uma banda sonora que traz os tipos do Nordeste onde ambientou sua história de cantadores, cangaceiros, beatos e povo que vive e sofre. Se "Deus e o Diabo na Terra do Sol" - o mais importante filme nacional dos anos 60, se tornou um clássico [inesquecível], o deve muito [à] trilha sonora de [Sérgio] Ricardo, neste "A Noite do Espantalho", em termos musicais, vemos a precisão [cinematográfica] das imagens do compositor de [Marília]: sua voz forte, máscula, só como um instrumento nas cantigas rudes do Nordeste, em que fala de crimes e mortes mas também do amor. "A Noite do Espantalho" , em termos de sua trilha musical é um disco indispensável não apenas aos colecionadores de bandas sonoras, mas principalmente a quem orgulha-se de ser brasileiro e acompanha a nossa música e tem sabido entender as diversas fases da carreira magnificamente honesta e consciente de [Sérgio] Ricardo, um artista e homem de seu tempo e que assume um papel da maior importância para nossa música e cinema - numa linguagem sincera a todas as pessoas de sensibilidade. P.S.: um destaque especial para o artista paulista Sami Mattar, que criou o [belíssimo] cartaz do filme, aproveitado também para a capa deste disco da Continental.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Nenhum
Música Popular & Trilha Sonora
39
13/10/1974

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