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Aramis

Múltiplas chaves para a compreensão do filme

O que fascina num filme como "Depois de Horas" é a liberdade que permite para interpretações/aproximações conforme a (in)formação cultural de cada espectador. Podendo ser visto desde uma simples, comédia de situações até uma profunda reflexão sobre a solidão nas grandes cidades, a vida, a morte, encontros & desencontros. Por exemplo, o mergulho de Paul Hackett no SoHo já foi interpretado como o inverso de uma "Alice no País das Maravilhas" do matemático inglês Lewis Carrol (Charles Lutdwidge Dogson, 1832-1898) com sua mitologia que 122 anos após a publicação do livro continua a merecer novas análises e descoberta de significados. Ao chegar no apartamento de Marcy, o personagem Hackett não a encontra imediatamente. Em compensação, a sensual e estranhíssima Kiki esculpe (ou monta?) em papier-mache um homem desesperado, que Hackett associa a mais famosa das telas do pintor dinamarquês Edvard Munch (1863-1944), "The Cry" (O Grito), óleo, 91 x 74 centímetros, executado em 1893, e que se econtra na Nasjonalgalleriet, em Oslo. Pintor e escultor voltado a uma obra que externasse o desespero das pessoas, ele próprio sofrendo dos nervos e com ataques de loucuras (viveu alguns anos em Berlim e Paris), a citação de Munch não é gratuíta. A escultura integra-se na ação dramática do filme, passando como um personagem (ela é roubada por dois larápios que acabam tendo uma importante função no final) e, no final, quase que como uma réplica, executada por outra (também neurótica) mulher, vem salvar/aprisionar Hackett. O crítico Sérgio Augusto de Andrade, no mais profundo texto dedicado a "After Hours" ("Arte e Clausura", "Jornal da Tarde", 17/1/87), ignorou o aspecto da escultura de Munch, mas estabeleceu relação entre o universo dark do SoHo visto por Scorcese com o espaço descoberto em 1760, em pleno iluminismo, pelo grande arquiteto veneziano Giovanni Batista Piranesi (1720-1778). Quando toda a Europa celebrava com a maior paixão as virtudes de racionalidade, Piranesi - sempre subestimado, sem emprego e em silêncio - se dedicava a desenhar e reelaborar espaços pródigos em escadas que nunca levavam a lugar nenhum, torres enormes erigidas como pedras de dimensões sobre-humanas, parapeitos que revelavam corredores suspensos, arcos que descreviam vãos livres ameaçadores e macabros, correntes perdidas, janelas circulares com grades, zonas escuras de onde pendiam cordas ou argolas: toda uma épica de enclausuramento imaginada por um arquiteto desmesurado, excessivo atormentado, sinistro. Partindo dessa referência, Sérgio Augusto de Andrade abre uma outra porta de interpretação a "Depois de Horas", citando especialmente o final, quando Hackett é literalmente emparedadeo dentro de sua própria forma esculpida: de modelo, ele passa a seu próprio simulacro - tudo o que resta de seu corpo são dois olhos desesperados que tentam romper sua armadura, escapar, enfim, de sua última couraça. Neste momento não há mais metáforas: Paul Hackett é um prisioneiro engessado, imobilizado e mudo. E sua libertação vem, ironicamente, na forma de roubo dos ladrões - que o devolvem, por acaso, a rua, no amanhecer, fazendo-o voltar ao seu emprego - também uma espécie de amarra. A riqueza de "After Hours", como filme-código, faz com que até se esqueça dos detalhes tradicionais: as ótimas interpretações, a fotografia explendidamente identificada ao clima de Michael Ballhaus (cameraman alemão, que colaborou em vários filmes de Fassbinder) e a explêndida trilha sonora na qual Howard Shore reuniu desde Mozart até temas punk, e calcando em "Is That All There Is?", o momento de maior integração música/emoção/comunicação. O crítico inglês Paul Taylor ("The Film Tearbook" volume 5, 1986) viu até citações em homenagem a Roger Corman, mestre do cinema de terror (especialmente "Bucket o Blood", 1964, inédito no Brasil).
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
13
17/02/1987

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