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Maria Thereza, o passado a espera

Anos atrás, um texto de Maria Thereza Lacerda sobre o Colégio Cajuru causou polêmica. Sem meias palavras lembrou o ensino rigoroso, quase radical que as religiosas francesas ali implantaram nos anos 40/50. O discurso que Maria Thereza fez no jantar reunindo as colegas do ano de 1944 - que receberam seus diplomas do curso ginasial a 15 de dezembro, uma sexta-feira - foi bem humorado desde o início. "Foi numa sexta-feira quando nós, representantes da burguesia paranaense nos apresentamos para a solenidade de nossa colação de grau. O jornal que publicou a notícia de nossa formatura já no dia 12 de dezembro informava que a nossa era a maior turma que até então saíra do Colégio Cajuru. Houve missa às 8 horas celebrada pelo arcebispo metropolitano, D. Ático Eusébio da Rocha, e, às 3 horas da tarde, recebíamos o canudo simbólico. Fomos coradas com a horrível coroa de louros feita de um material cor de cobre e terminada por um laço de fita verde e amarelo, ornamento que ainda podemos ver sobre as nossas graciosas cabeças nestas fotos que compuseram o nosso álbum - uma inovação de nossa turma, uma vez que até então, o colégio fazia um só quadro de formandas". xxx "Em dezembro de 1944, os pracinhas brasileiros lutavam na Itália e a "Gazeta do Povo" trazia como manchete no dia 15 de dezembro: "Lutaremos até a vitória final". Só que nós - lembrou Maria Thereza - estávamos apenas romanticamente preocupadas com aquela guerra distante, isto é, através de filmes e da propaganda contra o Eixo. Éramos adolescentes imaturas e egoístas, as conseqüências da guerra não nos faziam sofrer: havia algumas que foram diretamente atingidas mas estes detalhes nós só os conhecemos muito tempo depois. Mandamos tricôs e chocolates para os soldados - presentes que eles nunca receberam. Para nós o pior da guerra era o racionamento, sobretudo o da gasolina, porque rodávamos em ônibus a gasogênio que entrava, diariamente, em pane. Mas aprendemos depressa o Hino do Expedicionário: Por mais terras que eu percorra Não permita Deus que eu morra Sem que eu volta para lá. Curitiba era uma cidade de 150 mil pessoas e que já enfrentava alguns problemas. Por exemplo, faltava uma estação rodoviária e assim sendo cada companhia de ônibus interestadual saía de um local diferente. O prefeito Alexandre Beltrão e o interventor Manoel Ribas (continuávamos em plena ditadura Vargas) contrataram o arquiteto francês Agache para fazer um projeto urbanístico para a cidade. Hoje, nesta consulta retrospectiva aos jornais, prestamos atenção a todos estes detalhes, mas, naquela época, estávamos mais interessadas em programas de cinema e os nossos eram os Cines Imperial, Curitiba, Luz, Broadway, América e Ópera. Deanna Durbin e Franchote Tone estavam no Cine Curitiba com o filme "A Irmã do Mordomo". E ainda havia pelas nossas telas Paul Muni, Joan Blondell, Shirley Temple, Judy Garland, Anita Louise, Cary Grant. Charles Boyer e Joan Fontaine inauguravam o Cine Vitória, ex-Imperial com "De Amor também se Morre". Mas o olhar famoso de peixe morto de Charles Boyer não nos impressionava tanto quanto o sorriso cínico de Clark Gable, os olhos românticos de Tyrone Power, a beleza de Errol Flynn como Robin Hood ou o pirata dos 7 mares, a simpatia de Gregory Peck, o bigode de Don Ameche, a canastrice de César Romero, sem esquecer Nelson Eddy e Janett MacDonald cantando em dueto nos famosos musicais. E havia ainda o Cassino Ahú, onde nós, menores de idade, não podíamos entrar". xxx Depois de lembrar o refrão de uma valsinha de Mário Lago "que nós cantávamos naquela época": "Será / Será / Será / Que amar é ruim? Será que amar vive disto, será? Será que amor é assim?" Maria Thereza fez as reflexões e questionamentos, num momento mais sensível em seu discurso. "E daí? O que nos aconteceu? Será que amar foi ruim? Descansamos sobre os nossos louros ou prosseguimos na luta? Nosso destino foi termos nascido num determinado meio e numa determinada época - o que nos levou a nos encontrarmos no Colégio Cajuru. Nosso fato foi sermos mães de família, advogadas, professoras, farmacêuticas, funcionárias públicas, bibliotecárias, etc. Por onde andamos nestes 45 anos? O que somos hoje, nós, as tímidas donzelas da década de 40? Casamos cedo com o primeiro namorado e único amor e fomos felizes para sempre? Ou casamos e descasamos? Ou não casamos? Tivemos filhos? Escolhemos uma profissão? Como estamos hoje, fisicamente? Tingimos os cabelos, esticamos os rostos para apagar as rugas? Engordamos? Ainda lemos lista telefônica sem óculos? Onde foram parar os nossos sonhos, as nossas ilusões? Como ficou a nossa escala de valores? Mudaram os nossos parâmetros? O que aconteceu no mundo depois que deixamos o nosso "amado Cajuru", do hino oficial, vocês se lembram? Salve, salve, amado Cajuru Templo de estudo e caridade Braseiro intenso de instrução Por seres a luz da mocidade Juramo-te dedicação". xxx Na máquina do tempo de suas memórias, após lembrar de que os homenageados da turma de 1944 há muito já viraram nomes de ruas - "e Mére Calixte, que não era pedicure como nós pensávamos, mas a freira mais importante, hierarquicamente, dentro da Irmandade de São José", Maria Thereza falou das "patotas" da época, dos grupos de amigas que se mantiveram unidas - ou que se separaram pela morte de algumas e caminhos diferentes de outras. Um momento descontraído foi quando ela disse: "Tenho lembranças esparsas deste tempo: o tricô que se fazia durante o recreio, principalmente as luvas em ponto duplo: tira um ponto, faz um ponto e vice-versa. Se errasse, o tricô "grudava". Por que a gente fazia tanta luva de lã? Nas vésperas dos grandes desfiles da Semana da Pátria a que a ditadura getulista nos obrigava, podíamos freqüentar as aulas de vestido enquanto se mandava limpar o uniforme e engomar o cabeção e os punhos". xxx Uma fotografia comportamental dos anos 40 tornou mais documental um certo momento do discurso de Maria Thereza, lembrando que "aos domingos, íamos à missa de manhã, almoçávamos macarrão com posta ou com rosbife e assistíamos à sessão dupla da matinê, das 2 às 6 horas. Depois, era o "footing" na Rua 15 ou o Chá Dançante de Engenharia. Dançávamos com a Orquestra do Genésio que tovaca músicas de Glenn Miller, Tommy Dorsey, Cole Porter e Harry James. Muitas vezes tomávamos chá de cadeira ou dançávamos com o "tal que não usava "Lifebuoy e que portanto tinha CC ou alguém que se enchia de Royal Briar, o perfume que deixa saudades...". Nestas ocasiões, nós caprichávamos: tomávamos banho com sabonete "Palmolive" ou "Lever", o sabonete das estrelas de Hollywood. Usávamos desodorante "Magic" ou "Odorono" que acabava com o suor e arrancava a pele das axilas. Nos perfumávamos com água de colônia "Flor de Maçã" comprada Lá no Luhn. Pingávamos "Lavolho" ou colírio "Moura Brasil" para ficar com os olhos brilhantes (duas gotas, dois minutos, dois olhos claros e bonitos). Passávamos "Cera Mercolizada" para amaciar a pele e curávamos as espinhas com "Pomada Minancora". Como enfeites, brincos e colares de pérolas falsas ou cultivadas ou a medalha de marcassite - tradicional presente de nossos 15 anos. Copiávamos os penteados das artistas do cinema. Rita Hayworth fazia escola. O romance de Leandro Duprée, "Éramos Seis" nos fazia chorar de emoção assim como o folhetim de Suzana Flag (ninguém sabia que sob este pseudônimo se escondia o Nelson Rodrigues), "Meu Destino é Pecar". Quase ao final, Maria Thereza voltou a fazer indagações em relação aos ensinamentos religiosos, aos retiros pregados pelos ameaçadores padres espanhóis. "Como nos adaptamos, individualmente, aos novos tempos? Como nos libertamos dos preconceitos da nossa geração mantendo uma atitude equilibrada entre a timidez e a ousadia, entre o medo da vida e a coragem de assumir novas posturas, entre a entrega ao convencional e ao estabelecido e um anseio de liberdade que não se chocasse com os antigos preconceitos? Cada uma de nós sabe de suas próprias lutas, dos seus secretos ou confessados sofrimentos, dos seus esforços para crescer como ser humano. Como lutamos nós, as da geração sanduíche, que ficamos prensadas entre o dever filial de respeito a pai e mãe e o dever materno de muita compreensão e excepcional tolerância com os próprios filhos, compreensão e tolerância que não foram privilégios da nossa educação".
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
17/12/1989

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