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Aramis

As mães-coragem da revolução de abril

Por uma feliz coincidência (e a palavra é esta mesmo), dois dos melhores momentos da arte brasileira chegam amanhã, quarta-feira, 13, a Curitiba. Em termos cinematográficos, o emocionante e contundente "Cabra Marcado para Morrer", de Eduardo Coutinho, inaugura o Cine Ritz. Um filme que desde as primeiras sessões, ainda reservadas, quando seus realizadores buscavam recursos para fazer a ampliação de 16 para 35mm, provocava lágrimas em todos que o assistiam. Premiado no I FestRio (4 troféus, inclusive o "Tucano de Ouro"), levado imediatamente a outras mostras e, há menos de 3 semanas, reconhecido em seus méritos por dois diferentes júris paralelos do Festival de Berlim, "Cabra Marcado para Morrer" é, a exemplo de "Os Anos JK" e, especialmente, "Jango", de Sílvio Tendler, o resgate amargo de nossa história contemporânea. Nas imagens de Coutinho - entre as filmagens em fevereiro de 1964, pouco antes do golpe de 1º de abril que impediu a seqüência da rodagem, e, iniciou a longa perseguição aos personagens reais dessa tragédia brasileira - até as imagens mais recentes da viúva Elisabete Teixeira, mãe-coragem paraibana, na tentativa de reunir a família, que a revolução separou, vemos toda a imensa realidade deste Brasil. Na simplicidade com que Eduardo Coutinho narra a história real, as Ligas Camponesas que tanto assustavam os donos do poder (e das terras), entre 1957/64, as lideranças camponesas, a luta dos líderes, como Pedro Teixeira, um entre tantos assassinados, compõe todo um painel. Mas "Cabra Marcado para Morrer" não fica no discursivo, no panfletário, no relato político e impessoal de um capítulo ainda pouquíssimo conhecido das lutas sociais brasileiras e que, coincidentemente, também tem agora sua primeira dissertação de mestrado definida por um jovem professor paraibano César Benevides (há 20 anos radicado em Londrina), que, concluindo o mestrado no Departamento de História da UFP, está publicando tese que traz, em profundidade de dados, informações que também estão nas telas do filme de seu amigo Coutinho. Mas, como dissemos mais do que esse aspecto de informação - "Cabra Marcado para Morrer" é Emoção pura, simples, natural de se ver uma mulher, tendo o marido assassinado e, de repente, obrigada a separar-se de seis de seus sete filhos, fugindo para uma distante cidade, escondendo-se com um nome falso e permanecendo vinte anos sem reunir a família, o que só acabaria acontecendo com a conclusão desse filme. Um filme único, realmente, como disse Coutinho em debate com os jornalistas, após sua projeção no FestRio, pois a proporção em que tentava resgatar o passado, procurando saber o que havia acontecido com cada uma das pessoas que, de princípio deveriam apenas figurar numa narrativa sobre o assassinato de um líder camponês, acabava participando da reunificação de uma família. O rosto sofrido, com uma beleza campesina, de dona Elisabete, nas primeiras imagens, transpõe-se a seguir para a mulher sofrida 20 anos depois. Sem dúvida, nos últimos 5 meses em que o sucesso do filme fez com que centenas de publicações estampassem sua fotografia, a imagem deixou apenas o documentário e ele passou a encarnar o próprio filme. Não foi sem razão que Coutinho a levou ao FestRio, onde teve todo o carinho de jornalistas, atrizes, cineastas etc. Há algumas semanas, dona Elisabete veio a Curitiba, para um congresso dos trabalhadores sem-terra, e, novamente, houve a emoção de todos que com ela estiveram. A partir de agora, com "Cabra Marcado para Morrer", na tela desse novo Cine Ritz, todos que sabem sentir a emoção das obras honestas, sinceras e importantes entenderão porque um documentário que se alongou 20 anos para ficar concluído e, partindo, aparentemente, de um fato regional, adquire a dimensão de uma obra universal. Um filme sobre seres humanos, família, violência, realidade - que, onde quer que seja, provocará lágrimas e reflexões. xxx Outra mãe-coragem é Eunice Paiva. Seu marido, o ex-deputado Rubens Paiva, foi sequestrado a 20 de janeiro de 1971, no Rio de Janeiro, e dele nunca mais se teve notícias. Ela e uma filha foram presas no dia seguinte e libertadas alguns dias depois, sem maiores explicações. Poucos anos depois, o filho, Marcelo Rubens Paiva, estudante de engenharia rural na Unicamp, em Campinas, sofreu um acidente fatal e ficou paralítico. Marcelo Rubens Paiva escreveu um livro - "Feliz Ano Velho", que lançado há pouco mais de três anos pela Brasiliense já chega a 40ª edição. Há dois anos, Adilson Barros, do núcleo Pessoal do Victor, fez uma adaptação ao palco e com direção de Paulo Betti, a peça ganhou quase todos os prêmios da temporada 1983/1984. Casa lotada em São Paulo e êxito repetindo-se no Teatro Ipanema, Rio de Janeiro. Agora, convidado a participar de um festival de teatro em Nova Iorque, "Feliz Ano Velho" tem uma rápida temporada em Curitiba (13 a 17, auditório Bento Munhoz da Rocha Neto). Coincidências! Coincidências! Coincidência de tanto na mãe-rural Elisabete Teixeira como a mãe-urbana Eunice Paiva estarem reflexos de um período de arbítrio. E as suas narrativas chegam agora, para os curitibanos neste festival e esperançosa com Ana e, que começa a Nova República com a posse do Dr. Tancredo em Brasília, sonhos (que não sejam ilusões) de milhões de brasileiras. Duas mulheres, duas mães, duas viúvas. Dona Elisabete Teixeira, que viu seu marido, o líder camponês Pedro Teixeira, assassinado numa tocaia numa deserta estrada da Paraíba em 1962, quando a luta pela posse da terra chegara aos pontos mais altos. Eunice Paiva é até hoje uma mulher legalmente casada com um morto sem sepultura. Mas o que fez Rubens Paiva? Em 1978 o "Jornal do Brasil" lançou um caderno especial intitulado "Quem matou Rubens Paiva?", onde dois repórteres, Fritz Utzeri e Heraldo Dias, faziam um completo levantamento do caso, sete anos depois. O motivo da prisão parece ter sido uma carta enviada por alguns amigos exilados no Chile. Uma amiga da família, Cecília Viveiros de Castro, depois de visitar o filho no Chile, foi detida no aeroporto, onde os agentes de segurança descobriram as cartas. Dali lhe foi levada para a 3ª Zona Aérea (para onde, no dia seguinte, levaram Rubens Paiva) comandada pelo tristemente célebre Brigadeiro João Paulo Burnier. Segundo versão de dona Cecília, ela outra mulher de Rubens Paiva permaneceram de pé muito tempo, com os braços para cima, num recinto fechado. Com a longa duração do castigo, dona Cecília fraquejou, sendo amparada por Rubens Paiva, que estava ao lado dela, a atitude dele irritou o chefe do interrogatório, descrito como "um oficial loiro de olhos azuis", que atacou Rubens e começou a derrubá-lo. - Vocês vão matá-lo! - gritou uma das mulheres. Isto fez com que este oficial ficasse completamente fora de si e, agarrando a mulher pelos cabelos, forçou-a a aproximar-se de Rubens já estendido no chão. - Aqui não se tortura, isto é uma guerra - gritou o oficial. xxx A descrição acima é feita por Marcelo Rubens Paiva, nas páginas 63/64, de seu "Feliz Ano Velho". Um livro admiravelmente em escrito, alternando passado e presente numa técnica perfeita. Um livro-emoção da primeira a última página e que foi transposto com impressionante fidelidade ao teatro por Adilson Barros, Paulo Betti resultando nesta peça notável - pessoalmente, consideramos a melhor realização feita no Brasil nestes últimos anos. Mas o importante é que assim como "Cabra Marcado para Morrer", não ficou apenas no hotítico mas foi ao lado humano que atingiu a medula da emoção, também "Feliz Ano Velho" tem a denúncia política, a tragédia da repressão, da prisão, tortura e morte de Rubens Paiva com parte de toda uma ação. Assim, Marcelo e seus amigos, os sonhos juvenis, os anos felizes da vida de Eunice e Rubens, muito humor e alegria - em quadros ultra-rápidos. Um cenário despojado - uma escada, uma casa de hospital, dois ou três endereços. Mas uma iluminação que parece falar, os diálogos extraídos do livro de Marcelo que colocou toda uma realidade destes terríveis anos 70. E, sobretudo, interpretações maravilhosas. Premiadas com toda razão. Denise Del Vacchio, hoje uma das mais importantes atrizes brasileiras que há 3 anos ganhava o moliére e que pouco antes havia estado em Curitiba, numa montagem de "Os Filhos de Kennedy" é a mãe-coragem Eunice Paiva. Sua interpretação é emoção/amor. Sua beleza física de uma mulher que, como dona Elisabete Teixeira, enfrenta os mais difíceis momentos com garra, coragem e, sobretudo, esperança. Talvez poucas vezes na história do teatro brasileiro uma atriz tenha dado tanto de si num papel como Denise Del Vecchio se deu nesta sua interpretação de Eunice Paiva. Um trabalho tão magnífico que os outros intérpretes tiveram que retirar dos ossos, nervos e mentes o que poderiam para comporem seus personagens: Marcos Frota, Adilson Barros, Bia Sion, Lígia Cabral, Marcos Kaloy e o próprio diretor Paulo Betti. Nestes dois anos em que a está em cartaz houveram algumas substituições mas ficou, antes de tudo, a identidade de uma peça que transpõe tudo que a ficção pudesse criar para mostrar que na realidade, nosso dia-a-dia, está a arte de conseguir sobreviver a cada crepúsculo e acreditar na alvorada do dia seguinte. xxx Sim! Feliz coincidência que faz com que possivelmente o melhor filme do ano - embora estabelecer parâmetros seja difícil - chegue a Curitiba no mesmo dia em que, após uma longa temporada de bons espetáculos, teremos cinco dias de única oportunidade para aplaudir a peça mais emocionante das tantas que procuraram colocar no palco o grito de denúncia, de amargura, de processo contra os 20 anos de repressão militar, de violência, de tortura.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
13
12/03/1985

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