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Aramis

Lady Day canta novamente - (27 anos depois continua a ser a melhor voz do jazz)

"Uma de suas canções mais famosas fala de estranhos frutos pendentes das árvores do sul. As árvores tem sangue nas folhas e nas raízes. Os frutos são cadáveres de negros linchados, que balançam ao vento" (Juarez Barrozo, 1973) Billie Holiday também foi linchada. Só que sua agonia durou um instante, não se restringiu a um momento trágico. Durou 44 anos. No dia 17 de julho, fez 27 anos da morte de Billie, aliás Eleonor Gough Mckay, seu nome verdadeiro. No ano passado, a 7 de abril, transcorreu o 70º aniversário de seu nascimento - numa favela do gueto negro de Baltimore, filha de Sadie Fagan, uma empregada doméstica de 13 anos de idade e de Clarence Holiday, guitarrista da orquestra famosa de Fletcher Henderson, um dos reis do swing. As efemérides podem sempre motivar homenagens póstumas a Billie - que em vida foi vítima das drogas, dos homens, da polícia - e quando faleceu, no Metropolitan Hospital de Nova Iorque, alguém disse em relação a causa mortis: - Ela morreu de tudo! Cumpria-se, assim, uma profecia que saira de seus próprios lábios: - "Tudo o que as drogas podem nos trazer é a morte e a morte rude e lenta". The Lady Sings the Blues -No ano passado, um dos lançamentos mais cuidados da Brasiliense foi a tradução para o português de "Lady Sings The Blues", a autobiografia que Billie Holiday assinou com Willian Dufty. O editor Caio Graco cuidou que houvesse toda uma motivação em torno do lançamento deste livro - editado nos EUA há 30 anos passados - e providenciou até um show com a esplêndida cantora Rosa Maria e o pianista Guilherme Vergueiro, com o repertório de Lady Day - o que se transformaria, posteriormente, no lp lançado pela Pointer, mas sem qualquer divulgação especial. Agora, na passagem dos 27 anos de sua morte, ao menos uma lembrança: a edição de "The legend of Billie Holiday" (MCA Records/WEA), com 16 de seus maiores sucessos, reprocessados eletronicamente para se obter a melhor qualidade sonora. Acompanhado da orquestra de Bob Haggart, Billie interpreta "That old Devil Called Love", "Lover Man", "There is no Greater Love", "Easy Living", "Solitude", "Porgy" (da ópera de Gershwin). Já com a orquestra de Bill Setgmeyer, outros clássicos: "Good Morning Heartache" e "Don't Explain", enquanto que com uma formação da qual não há maiores detalhes - o álbum completa-se com "My man", "Them There Eyes", "Now or Never", "Ain't Nobody's Business If I Do". "Somebody On My Mind", "Keeps On Raining", "You're My Thrill" e "God Bless the Child". São músicas conhecidas, standards, na linguagem jazzística. Mas que adquirem uma personalidade própria quando a intérprete é Billie Holiday, a melhor cantora de jazz em todos os tempos - opinião compartilhada da maioria dos críticos internacionais. Linda, habitualmente vestida de branco e a rigor, com uma gardênia também alva enfiada no cabelo, Billie Holiday marcava intensamente suas apresentações. Lester Young (1909-1959), o lendário clarinetista e band-leader, com quem Billie trabalhou alguns anos, lhe deu o cognome artístico que a consagraria: Lady Day. John Hammond, o fantástico descobridor de talentos, viu-a cantar quando ela tinha 17 anos e disse: - "Ela me atingiu com um impacto só igualmente comparável ao produzido por Bessie Smith. Bessie Smith (Chattanooga, Tenesse, 1894 - Clarksdale, Mississipi, 1937), foi a grande influência na carreira de Billie - assim como Ma Rainey (Gertrude Malisa Nix Pridgete, 1886-1939), havia marcado a carreira de Bessie, a grande "Imperatriz" dos Blues - totalmente desconhecida no Brasil, mas que terá agora, segundo promessa de Henrique Sverner, da cadeia Breno Rossi, a edição de sua obra, em três álbuns duplos a serem comercializados apenas em suas lojas a partir de outubro. Será uma oportunidade dos brasileiros conhecerem a incrível voz de Bessie Smith, uma cantora que tal como Billie, teve um trágico final de vítima: sofrendo um acidente automobilístico, foi levada a um hospital no Mississipi que se recusou a atendê-la porque era negra. Calvário Se Billie Holiday viveu momentos intensos, como grande cantora de jazz, trabalhando com orquestras marcantes - em 1933 já gravava com o clarinetista Benny Goodman (1909-1986) e ao longo de sua carreira teve sempre os melhores instrumentistas de jazz a acompanhá-la - sua vida nunca foi fácil. Nas páginas de "The Lady Sings the Blues" ela falou da miséria na infância, do choque que teve ao ver sua avó morrendo em seus braços, seu trabalho como faxineira num bordel e, aos 10 anos, violentada e, como era negra, foi levada a um reformatório como "corrupta". De castigo, foi obrigada a passar a noite ao lado de uma menina morta no reformatório. Adolescente, prostituiu-se e viciou-se em drogas (que a levariam inúmeras vezes à prisão). Nenhum de seus amores deu certo, mesmo quando o homem a adorava como foi o caso do magnífico saxofonista Lester Young, que, dizem, amou-a até o fim e foi marcante para a definição do seu estilo vocal. Poucos negros americanos sofreram como Billie Holiday a discriminação racial. Todo este sofrimento não impediu que deixasse um repertório imenso, que nos EUA é reeditado em inúmeros álbuns - não só as coleções organizadas da CBS ("The Golden Years", mais de 10 lps reunindo dezenas de gravações de 78 rpm), mas também em inúmeros outros selos, inclusive gravações piratas. No Brasil, são raros seus discos - em 1979 a CBS lançou o "Billie's Blues" e a Imagem tem dois de seus lps em catálogo. Agora a WEA traz este esplêndido "The Legend of Billie Holiday", com o melhor tratamento técnico, permitindo que se aprecie totalmente a beleza de sua voz. Há 14 anos, o inglês Sidney J. Furie levou a tela sua autobiografia "The Lady Sings The Blues" (no Brasil o filme se chamou "O Ocaso De Uma Estrela"), que apesar da esplêndida atuação de Diana Ross como Billie (chegou a ser indicada ao Oscar de melhor atriz), não fez justiça à carreira de Billie. Mas valeu - como valem todas as reedições de sua obra - para que o público voltasse a se interessar pela música desta cantora esplêndida, inigualável entre as maiores cantoras de todos os tempos.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Música
4
03/08/1986

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