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Aramis

Imaginação, sonho & loucura

"A vida, o que é, senão um sonho?" (Lewis Carrol, 1831-1898). xxx Mais uma vez, confirma-se! Um dos mais interessantes filmes contemporâneos - instigante, criativo e desafiador à imaginação, não passa de 7 dias de exibição: "Malpertius" terá hoje suas 5 últimas sessões no Cine Groff. Frente aos números, o bom Chico Alves, responsável pelo setor de cinema da Fundação Cultural, não tem outra alternativa: amanhã substitui a programação do Groff, pois apesar da sala exibidora pertencer a Fucucu, há que apresentar a mínima rentabilidade, pois caso contrário a diretora administrativa, arquiteta Jussara Valentim, esbraveja. E apenas 300 espectadores compareceram no Groff até domingo, o que dá uma média de menos de 15 espectadores por sessões. xxx Cult movie rodado na Bélgica há 16 anos, numa co-produção internacional, com elenco de artistas de vários países, "Malpertius" é o exemplo do cult movie: em seu lançamento, passa desperdiçado, mas a proporção que os (poucos) espectadores que o assistirem, começarem a discuti-lo, por certo crescerá o interesse e, no futuro, em sessões da meia-noite e mesmo na Cinemateca, sua reprise deverá se tornar um bom programa da (dita) "inteligentzia", que nesta temporada de férias prefere a praia ou os comerciais programas tipo "King Kong II" ou "Um Hóspede do Barulho". Claro que "Malpertius" é um filme-puzzle, daqueles que exige o raciocínio do espectador. A exemplo de outro cult movie em exibição ("O Ilusionista", de Jos Stelling, também a disposição em vídeo), é uma obra aberta, em que o real e o imaginário se misturam. Deixando abertas muitas portas para a percepção do espectador, "Malpertius" tem diferentes formas de ser entendido - que vai desde um sonho (ou alucinação) até uma (inteligente) revisão de mitologia grega - com uma das mais cruéis entidades da terceira geração dos Deuses do Olimpo, a Górgona, transfigurada numa fascinante mulher-paixão frente a um moderno Prometeu acorrentado e cercado de outros deuses transfigurados numa prosaica existência burguesa. Em torno de um misterioso déspota milionário, Quentin Cassave (Orson Welles, 1915-1985), em seu leito de morte, circulam personagens estranhos, num universo de ganância, de inveja, da busca do poder que marcam tantas tragédias. Neste mundo de pecadores e interesseiros, a branca imagem do Jan (Michel Bouquet), um marinheiro de imensa beleza física, soa como um estranho no ninho, dividido entre paixões e desejos de libertação, convivendo e (re)descobrindo mistérios que, longe de se esclarecerem, chegam ao final sem uma verdade definitiva. Justamente pelo fator de deixar em aberto várias interpretações é que este filme dirigido por Harry Kumel se torna fascinante. Por certo, deve ter feito uma adaptação muito pessoal do romance original (de Jean Ray, edições Mahaout, Paris, 1959) e a presença de Orson Welles no elenco não é gratuita: pelo próprio temperamento do genial diretor de "Cidadão Kane" (aliás, o personagem Quentin Cassave guarda certa semelhança com Kane), argumentos como estes sempre o atraíram, fazendo-o trabalhar, muitas vezes por pequenos salários, em projetos fascinantes (assim fez em outro filme-puzzle, "Refúgio Seguro / The Safe Place", de seu amigo Henri Jeaglon, também um cult movie que poucos viram quando exibido em Curitiba). Um ótimo elenco internacional - além de Michel Bouquet e Welles, temos a suave Suzan Hampshire, Mathie Carrere, Jean Pierre Casel, Walter Rilla e até a cantriz Sylvie Vartan (na personagem "Bets"), "Malpertius" oferece múltiplos caminhos para análise. Um deles: o significado dos longos corredores (em contraposição aos becos e ruas estreitas nas cenas externas), numa sugestão de caminhos sem fim, de portas trancadas - do mistério que se esconde atrás de cada ambiente confinado. Huis clos e claustrofóbico em sua armação de roteiro, tem, entretanto, uma esmerada fotografia de Gerry Fischer e uma excelente trilha sonora do mestre francês Georges De LaRue - por si só já motivo para se ver (e rever) inúmeras vezes este puzzle para armar no pensamento e guardar na retina cinematográfica. LEGENDA FOTO - O marinheiro Jan (Michel Bouquet) e Euryale/Górgona (Susan Hampshire), em "Malpertius": um desafiador filme-puzzle, só hoje ainda em exibição no Groff.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
03/02/1988

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