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Aramis

A guerra dos meninos

No dia 4 de agosto, um domingo que antecedeu a abertura do 19º Festival de Gramado do Cinema Brasileiro, uma magnífica reportagem do jornalista Roldão Arruda, no "O Estado de São Paulo", denunciava a morte de centenas de crianças. Coincidentemente, três dias depois, o público que assistia ao documentário "A Guerra dos Meninos", um dos médias em competição, via na tela as imagens sobre a tragédia que, indiretamente, o jornalista havia se referido. Há três semanas, na XVIII Jornada de Cinema Internacional da Bahia, novamente a exibição do filme de Sandra Werneck - duplamente premiada em Gramado (filme/direção) coincide com o noticiário distribuído pelas agências nacionais sobre novas violências cometidas contra menores no Brasil. Nesta quinta-feira, 10, quando, finalmente, ao menos alguns paranaenses estarão conhecendo as imagens contundentes do mais importante documentário deste ano - em exibição especial no auditório do SENAC (Rua André de Barros, 750, 14h30), patrocinada pela Câmara Municipal, não será surpresa se em algum jornal ou informativo de rádio e televisão estiverem sendo veiculadas notícias sobre novas atrocidades cometidas contra os menores. O documentário da carioca Sandra Werneck, 40 anos, quase 20 de cinema, é isto mesmo! É uma espécie de jornal filmado (e falado) de uma das mais trágicas realidades de nossos dias: a violência que atinge a toda sociedade civil - mas que vem mostrando escalada na faixa mais pobre daqueles que, ironicamente, seriam "os homens (e mulheres) de amanhã". Repetimos, aqui, o que já escrevemos algumas vezes: "A Guerra dos Meninos" é o maior exemplo de cinema de Utilidade Pública. O cinema feito, pensado e utilizado para fazer com que aquelas pessoas que vejam suas imagens conscientizem-se - e passem a agir como elementos multiplicadores - de uma realidade que embora sabida de todos, é escamoteada com a desculpa individualista de que "eu pago meus impostos, o governo que cuide do problema". Há dois meses, em Gramado, Sandra Werneck nos dizia que ao ler o livro reportagem de Gilberto Dimenstein, 33 anos, sobre a guerra silenciosa, "não declarada oficialmente, mas que nos últimos cinco anos atingiu mais de 2 mil crianças no Brasil", sentiu que apesar de todo êxito da obra - semanas em primeiro lugar entre os livros de não-ficção mais vendidos - era necessário dar uma dimensão ainda maior as denúncias formuladas. Dimenstein, hoje, o mais respeitado jornalista brasileiro por suas corajosas posições em denunciar escândalos e arbitrariedades de autoridades (especialmente a Presidência da República) através das páginas da "Folha de São Paulo", apoiou entusiasticamente a idéia. Não só abriu mão de qualquer direito autoral como auxiliou Sandra na realização deste filme de dificílima produção, que só se viabilizou graças a recursos obtidos em organismos internacionais - conforme aqui já registramos anteriormente (O Estado do Paraná, 8/9/91). Para abordar, com toda independência, um tema incômodo e difícil como este - que expõe o Brasil frente a uma chaga vergonhosa internacionalmente - Sandra teve que se arriscar pessoalmente. Com o fotógrafo Guy Gonçalves e seu ex-marido, o também documentarista Sílvio Da-Rin ("A Igreja da Libertação") fazendo o som direto, Sandra buscou na Baixada Fluminense, no Recife, em São Paulo e outros locais os personagens reais de seu drama sem-ficção: as crianças que sobreviveram a massacres, os comerciantes que apóiam a existência de esquadrões de extermínio aos menores delinqüentes, um matador que cumpre pena numa penitenciária em São Paulo e outro, em liberdade, que só concordou em falar devidamente encapuzado - num dos mais difíceis momentos de filmagens ("fui conduzido a ele sob mira de metralhadoras e avisada de que não sairia viva se o irritasse" conta Sandra). De aparência frágil, feminina e bonita, Sandra é, entretanto, uma mulher de idéias seguras e corajosa. Anteriormente, já havia descido ao mundo de marginalidade para, com sua sensibilidade tentar entender a criminalidade em "Pena/Prisão" e "Damas da Noite", curtas também antológicos sobre as mulheres que cumprem prisão e as meninas conduzidas a prostituição. Há três anos, outra mulher corajosa, a ex-atriz Marlene França após ter realizado um contundente documentário sobre o frei Tito - uma das vítimas da ditadura militar - rodou "Meninos de Rua", média metragem e que trouxe imagens também impressionantes sobre a violência sofrida pelos menores nas grandes cidades. Embora aparentemente ficcional, "Pixote", que o romancista José Louzeiro escreveu há 15 anos e que o argentino-brasileiro Hector Babenco filmou em 1980, representou o primeiro brado internacionalmente ouvido de alerta sobre o que vem acontecendo com a infância e juventude brasileira. Ironicamente, o próprio ator-principal daquele filme, o então menino Fernando, se tornaria vítima do processo: mesmo com as portas abertas pelo êxito do filme (premiado internacionalmente e exibido com sucesso nos EUA/Europa) não teve condições de se profissionalizar, caiu na marginalidade e foi assassinado pela Polícia Militar do Estado de São Paulo há menos de três anos. Portanto, "A Guerra dos Meninos" pode, aos mais insensíveis, não trazer novidades, pois as imagens que Sandra Werneck foi buscar nas ruas fazem parte de um cotidiano trágico. Entretanto, é através de trabalhos como estes que artistas sensíveis a uma realidade oferecem sua contribuição. Apresentada no mercado mundial de televisão em Cannes, de 19 a 23 de abril, despertou o interesse imediato de programadores de documentários de TVs de pelo menos 20 países, índice que foi considerado "um recorde" pela agência de notícias France Press (em despacho feito a 25/4/91). Já foi vendido para vários países e convidado oficialmente para, entre outros festivais, os de San Sebastian, na Espanha e San Francisco, nos EUA. No Rio de Janeiro, durante cinco semanas foi exibido no Cine-Clube Estação Botafogo, com sessões abertas a menores de rua. Em Curitiba, graças ao apoio que os vereadores Nely Almeida e Horácio Rodrigues deram a nossa sugestão, haverá ao menos esta exibição especial, quinta-feira à tarde, a qual se espera compareçam não só os vereadores da cidade, mas também todas as pessoas que direta ou indiretamente tem a obrigação de fazer algo para que a guerra silenciosa que dizima centenas de crianças mensalmente em nosso País seja terminada, naquilo que, nas palavras de Gilberto Dimenstein, "se esconde sob o tapete da nação e cuja ponte saliente se revela no extermínio sistemático de crianças". xxx Graças a iniciativa da deputada Emília Belinatti e, especialmente de sua assessora, a jornalista Rose Arruda, "A Guerra dos Meninos" será apresentado também em sessão especial em Londrina, com patrocínio de várias entidades locais. Infelizmente, devido a problemas pessoais, Sandra Werneck - convida para vir as exibições em Curitiba e Londrina não poderá estar presente. Entretanto, a força das imagens de seu filme é o melhor depoimento que poderia oferecer. Espera-se que na sessão de quinta-feira, 10, comparecendo a Sra. Fany Lerner, Secretaria Municipal da Criança - e que vem realizando admirável trabalho nesta área - oficialize-se a solicitação de que este documentário mereça ser programado pelo menos por duas semanas numa das salas de exibição mantidas pelo povo curitibano e que estão sendo tão mal administradas pela FUCUCU. Afinal, só se justifica que a Prefeitura financia cinemas se abri-los para filmes de real utilidade pública.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
20
08/11/1991

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