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Aramis

Gil, deus da Mu dança num momento harmonioso

Aos 47 anos - a serem devidamente comemorados na terça-feira, 27 de junho, Gilberto (Passos) Gil (Moreira) começa a se livrar daquela síndrome de Peter Pan. Em sua inegável criatividade e ligação com o que há de novo no mundo musical, Gil, desde 1963 - quando fez sua primeira música ("Felicidade Vem Depois", 1963, um samba bossa-nova ao estilo de seu ídolo João Gilberto) sempre esteve antenado com o novo. Isto o fez, ao lado de Caetano (e levando de carona as cantoras Maria Bethânia, Gal e uma série de outros baianos) a presença de maior vigor na música brasileira nestas últimas duas décadas. Belíssima voz, inteligência para compor letra e música, Gil tem uma obra importante. Entretanto, a cobrança do novo - exigência de um público jovem que ele nunca quis perder - o fez, em algumas ocasiões, cair em concessões lamentáveis. Embarcando em várias canoas de modismos, mesmo com todo o seu vigor (quase) soçobrou nos mares do consumismo - mas sempre salvando-se com a bóia da inventividade. É gratificante reencontrar um Gil mais comedido e tranqüilo, sabendo valorizar a belíssima voz que Deus e a Mãe Menininha do Gantois lhe deram, em belíssimas músicas deste seu novo lp ("O Eterno Deus Mu dança", WEA). Artífice das palavras, pesquisador de signos e imagens - o que o fez aproximar-se de Paulo Leminski, um de seus grandes amigos - Gil sabe trabalhar as letras, a partir das próprias imagens-temas. Assim foi com a "Re-fazenda" e "Re-favela" - dois grandes momentos de sua discografia-carreira. Em "O Eterno Deus Mu dança", num jogo apropriado de palavras, Gil aparentemente ironiza esta cobrança do novo que lhe fazem de sua obra - mas que também pode extrapolar para o lado político. "Sente-se a moçada descontente onde quer que se vá Sente-se que a coisa já não pode ficar como está Sente-se a decisão dessa gente em se manifestar Sente-se que a massa sente, a massa quer gritar". Trabalhando tanto com as palavras (apenas em "Baticum" tem um parceiro à altura: Chico Buarque) como nos arranjos e na convocação dos instrumentistas a ele identificados, Gilberto Gil propõe em cada uma destas dez novas músicas aquela reflexão sonora. Evidentemente, que as canções de Gil, na maioria, são obras compactas, de um aprendizado por outros cantores(as) que exige uma demorada concentração. Mesmo quando cria uma belíssima e poética canção popularizada pela televisão - "Amarra o teu Arado a uma Estrela", tema de abertura da telenovela "O Salvador da Pátria" - ou a romântica "Toda Saudade", uma espécie de revisitação, 30 anos depois, à Bossa Nova que fez sua cabeça. E que já abre com uma frase para ser ampliada e colocada num quadro: "Toda saudade é a presença da ausência de alguém, de algum lugar, de algo enfim". Não é sem razão que cada novo disco de Gil merece longas interpretações, digressões que passam do registro fonográfico para análise lingüistica e sonora - pois uma apreciação não se esgota em apenas algumas linhas de um review. A primeira audição deste "O Eterno Deus Mu dança" mostra um Gil bem mais tranqüilo e seguro, como diz também na abertura de "Cada Tempo em seu Lugar": "Preciso refrear um pouco o meu desejo de ajudar Não vou mudar um mundo louco dando socos para o ar Não posso me esquecer que a pressa é a inimiga da perfeição". Se a "Mulher do Coronel" é sintética, "Baticum", parceria com Chico Buarque, tem um discursivo e irônico texto com símbolos da sociedade de consumo. Já "De Bob Dylan a Bob Marley, um Samba Provocação", surge como um reggae-reflexão, concluindo que Bob Marley morreu "porque além de negro era judeu / Michael Jackson ainda resiste / porque além de branco ficou triste". O sax de Raul Mascarenhas está perfeito no solo "Do Japão" e o "Requiém para Mãe Menininha do Gantois", é uma indispensável homenagem a um totem da cultura baiana. Universalista, Gil compõe e canta em francês no terno "Mon Thiers Monde". Deus da mudança, Gil é o trovador iluminado deste final de década, num momento inspirado de criação musical - como há tempos não fazia.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Música
23
25/06/1989

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