Conservatória, a cidade com noites de serestas
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 29 de novembro de 1986
Poetas, Seresteiros, namorados, correi! Há noites de luar em um paraíso para quem conserva o romantismo em seus corações.
Chama-se Conservatória, é um distrito do município de Valença (a cidade natal da violonista Maria Rosa Canellas, 45 anos, que adotou o nome artístico de "Rosinha de Valença", distante 150 km do Rio de Janeiro. Tem pouco mais de 4 mil habitantes, um casario colonial espalhado por apenas três ruas mas ali vive a alma da Seresta brasileira.
A tradição da Seresta de Conservatória é centenária. Ali, as ruas tem nomes de modinhas e valsas - "Chão de Estrelas", "Luar do Sertão", "Casinha Pequenina" e tantas outras. Cândido das Neves (O Índio, 1889-1934), o autor de "Noite Cheia de Estrelas", é adorado - como tantos outros seresteiros. A ali existe o único Museu da Seresta no Brasil.
Quem primeiro "descobriu" esta Passargada da música antiga foi a admirável e incansável Neusa Fernandes, professora universitária, ex-diretora do Museu da Imagem e do Som e atualmente diretora da Divisão de Pesquisa de Manifestação Cultural na Secretaria de Ciência e da Cultura no Rio de Janeiro. Elton Medeiros, 56 anos, seu marido, um admirável compositor, cantor e pesquisador, levou o entusiasmo a Paulo Tapajós, 73 anos - o último de nossos modinheiros, e com a energia que Norma Tapajós sabe tão bem transmitir, Conservatória, com sua pousada de extrema simplicidade, mas tanto calor humano transmitida pelo "seo" Luís passou a receber regularmente visitas de tantos que amam a música brasileira tradicional.
A cidade tem seus seresteiros, como o barbeiro Adilton Alves Raposo, o comerciante Clóvis Freitas Neto, o José Tenente (José Garboggini Quaglia), despachante oficial e, especialmente os irmãos Joubert Courtine de Freitas e José Borges de Freitas Neto. Eles, a frente de muitos outros apaixonados pelas serestas - como os músicos Werther de Sá Lenzi (flauta), Luiz Gonzaga Pinto Magalhães, José soares de Freitas, Rômulo Paiva (violonistas) e José Maria (cavaquinho), fazem com que as noites de Conservatória tenham dolentes valsas e ternas modinhas que se espalham por suas calçadas centenárias.
Um espaço que longe da poluição e desgaste urbano - felizmente, protegida por 20 quilômetros de estrada ainda não asfaltada - tem um clima mágico de brasilidade e nostalgia - mesmo ameaçado por alguns jovens de cidades vizinhas, que a invadem nos sábados, com o supérfluo rock nos toca-fitas de seus carros, ainda conserva a beleza do canto de obras-primas como "Luar do Sertão", "Eu Sonhei Que Tu Estavas Tão Linda", "Malandrinha", "Lágrimas" (a belíssima seresta de Cândido das Neves, primeiro sucesso de Orlando Silva, há 52 anos).
Graças a energia de Neusa Fernandes, a animação de Norma e, especialmente a experiência e amor de Paulo Tapajós e Elton Medeiros pela boa música, foi possível a gravação de um enternecedor elepê ("Conservatória - A Vila das Ruas Sonoras", edição da Secretaria de Ciência e Cultura/Departamento de Cultura/INEPAC, Rio), que preserva a espontaneidade da música que seresteiros fazem numa cidade-encanto.
Gravado ao vivo, no Museu de Seresta e nas ruas de Conservatória, nos dias 10 e 11 de janeiro deste ano, este elepê espontâneo, produzido com imenso carinho, praticamente teve sua edição esgotada no lançamento feito naquela cidade, há dois meses. O que é uma pena, pois traduz a alma de um povo, mostrando inclusive duas composições de um autor da própria cidade '"Ballet dos Vagalumes" e "Rua das Flores" (José Borges) e as vozes dos seresteiros da cidade - como os casais Jorge de Marina Fonseca, Braz Leão, Francisco Magalhães, o jornalista José Barra de Almeida, Maria Nogueira, Djalma Gama, Lia Mello e tantos outros, em clássicos das serestas como "Lábios Que Beijei" ou mesmo numa seresta recente como "Amor Perfeito" (Paulo Cesar Pinheiro/Ivor Lancelotti).
Há anos que não é editado no Brasil um disco de serestas. Difícil encontrar álbuns deste gênero nas lojas. Por isto, a gravação ao vivo, feita em Conservatória é um documento emocionante - acompanhado de uma monografia ("Conservatória de ontem e de hoje", 28 páginas), na qual, Neusa Fernandes e Emy Fonseca, em completa pesquisa, com texto final de Anésio Pereira Dutra, oferecem um verdadeiro mini-ensaio não só sobre este espaço mágico na geografia cultural fluminense (e que merece ser tombado para não ter suas características históricas destruídas), mas com material referencial, básico, sobre a Seresta brasileira.
À música brasileira, que tanto deve aos esforços de Neusa Fernandes, Elton Medeiros e Paulo Tapajós - pesquisadores dos mais sérios, acrescentam-se agora também este álbum-documento de uma pequena vila que tem no amor a música brasileira, a sua luz e vida.
Que vontade de ir embora para Conservatória, como diria Manuel Bandeira em Relação a sua Passargada!
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