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Aramis

Cida e Leila, a palavra trabalhada

O som & (ou) a palavra? Uma questão que não se pensaria há alguns anos mas que hoje, numa linha evolutiva musical, passa a ser questionada cada vez mais por quem se propõe a trazer algum trabalho mais consistente, numa briga que ultrapasse o mercado consumista, imediato, e deseje uma permanência dentro de um panorama sonoro cada vez mais mutante. A questão, aparentemente irrelevante, surge frente a audição atenta de alguns trabalhos mais expressivos de cantoras que estão buscando seu espaço. Se uma veterana como Elizeth Cardoso, aos 66 anos e meio século de carreira, tem na palavra romântica, no canto do coração a sua linguagem exata e perfeita - ( e quem não souber admirá-la que consulte imediatamente um otorrinolaringologista), cantoras de vozes privilegiadas como Cida Moreira, Leila Pinheiro ou Eliana Estevão não ficam apenas na interpretação vocal certinha, na dicção clara - mas buscam um repertório indagador e inquieto, capaz de aproximá-las de diferentes tipos de públicos. Leila Pinheiro, paraense, que chegando a finalíssima do Festival dos Festivais com o belíssimo "Verde" (Eduardo Gudin/Costa Netto) teve finalmente um espaço maior (que seu lp independente, e dois anos anteriores, não havia obtido), usa sua voz perfeita, das mais agradáveis - e por isto mesmo chamada Bossa Nova - em interpretações que vão desde revisitações a clássicos como "Anema e Core"(D'Expósito/Tito Manlio) em versão de Nelson Motta e do bolero "Besame Mucho" (Consuelo Velasquez) a uma demonstração, sem preconceito, de que pode haver vida inteligente entre roqueiros, gravando "Todo Amor que Houver Nessa Vida" (Frejat/Cazuza).Entre a versão e o rock, o mignon sonoro, representado por dois João Donato ("Um Samba" e "O Fundo"), em parcerias com Caetano ( presente com "Podres Podres") e Gil ( também com um tema solo, "Olho Nu"), respectivamente. Ela própria, em momento de feliz inspiração, em "Becos" (Liana Soares) mostra porque, neste seu elepê ("Olho Nu", Polygram) torna-se uma presença tão importante neste ano. Já em seu terceiro elepê - mas primeiro a obter maior repercussão (o primeiro, "Summertime", gravado ao vivo, é raridade; o segundo, da Lira Paulistana, também não tinha a unidade desejada), a gorda, polêmica e nem sempre simpática - mas extraordinariamente talentosa Cida Moreira realiza um dos melhores discos do ano (Continental, julho/1986). Paulista mas com longa vivência em Londrina (1976/1980), Cida é o exemplo de cantora show-woman. Ao piano, voz poderosa, canta e estraçalha um repertório que a faz mostrar outra de suas características: a atriz, já vista em vários filmes rodados em São Paulo. Uma cantora-cabaret, daquelas ideais para fazer um disco-emoção, com as canções de Brechet-Weill, bem ao estilo da Alemanha hitlerista - sugestão aliás, que já fizemos há algum tempo. Em fase ascendente, com muitos shows, Cida Moreira vem tendo seu estilo personalíssimo e sua força sonora reconhecida por platéias que crescem bastante. Ao vivo, especialmente, é uma show-woman marcante, mas, desta vez, num álbum produzido com imenso esmero por Chico Mourão, revelando um extraordinário arranjador - Gil Reyes, Cida provoca frissons com um repertório inteligente, criativo e desafiador. Assim, a rigor, em cada faixa, busca uma proposta, uma forma de mostrar que como dizia Gil, já há muitos anos, se existem muitas formas de fazer música, ela prefere a todas. De um letrista-pesquisador ( e também pianista) cuja presença começa a crescer entre os intérpretes paulistas, José Miguel Wisnik, Cida grava, por exemplo, a bem humorada e original "Como diria Satie" (arranjo próprio, o autor no piano e Sion no sax-soprano), com letra toda em francês - citando ironicamente personalidades daquele país. Uma releitura, extremamente harmoniosa , do já clássico "Clara Crocodilo" de Arrigo Barnabé (com arranjos e o próprio nos teclados), segue-se a uma vinheta, de duas linhas de letras ("Nu com minha música/Fora isso somente amor") de Caetano Veloso para encerrar uma das faces do disco. E o que dizer de uma corajosa versão de Miguel Paiva para a longa e discursiva letra de "Hurricane" (Furacão), um dos mais conhecidos protestos de Bob Dylan na década de 60? A experiência foi bem sucedida, tanto quanto momentos que resgatam o antigo "Balada do Louco" (Antonio Dias Batista/Rita Lee), ou dão o toque de um humor inteligente a "Uma cerveja por favor" (Eduardo Dusek/Luiz Carlos Guedes) e "Moças de Vitrine" (Dalto/Claudio Rebello). Se Leila Pinheiro nostalgicamente emociona com seu "Besame Mucho", Cida foi buscar num antigo êxito dos anos 50 - "Lejania" , de Gimenez - que na versão de J. Fortuna/P. Júnior se chamou "Meu primeiro Amor", a suave homenagem dedicada aos pais - e com um arranjo no qual Gil Reys destacou o violão de Paulo Bellinatti, as flautas e as cordas. Numa viagem sonora de tantas surpresas, outras ainda ficam reservadas: a "Vocalise" (Arrigo) sem letra, o arranjo extremamente moderno que Bozo Barretti fez para "De Presente" (Altay Velloso) e, especialmente, duas faixas de especial significado. Uma , a maravilhosa "Mais que a Lei da Gravidade" parceria de Paulinho da Viola/Capinam, tão inteligente em sua concepção como foi, há 15 anos, outra parceria da dupla ("Vinhos Finos, Cristais"), uma jóia sonora, extremamente delapidada em sua letra perfeita, em sua harmonia sonora - e que no arranjo de Reyes traz em destaque o violão de Ulysses Rocha. Por último, uma presença muito local, embora até agora inédita: Jussi Campello, 22 anos, curitibana, estudante de arquitetura e compositora que pelo visto tem um vigor extraordinário. Amiga de Cida teve seu envolvente e lírico "Mandarim" escolhido para abrir o lado A. Uma canção estruturada de forma inteligente e que faz com que Jussi mereça atenção especial - pois, a julgar pelo que diz a própria Cida, "ela tem um punhado de outras belas canções e é uma boa intérprete". Só que até agora restrita ao pequeno e privilegiado grupo de seus amigos.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Música
4
14/09/1986

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