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Aramis

Chato, pretencioso, mas é inteligente!

Uma das mais (fáceis) observações que se pode fazer a respeito de "O Cinema Falado" é de que se o mesmo fosse reduzido para uma média metragem, de 30 a 40 minutos, seria uma obra-prima, capaz de merecer prêmios em qualquer festival com júri de bom senso. Há seqüências belíssimas. Produção irrepreensível (fotografia de Pedro Farkas, montagem de Mair Tavares). Entretanto o filme é longo. E se há momentos deliciosos - visual ou mesmo auditivamente - há seqüências que se tornam insuportáveis a quem não seja tiete de Caetano. De sub-Godard a pretensioso tropical, todas as adjetivações se aplicam (e as vezes se justificam) ao filme. Uma coisa não se pode negar: é um filme extremamente pessoal. Um testamento, como, com tanta lucidez, a Sra. Violeta Geirneseau, irmã do governador Miguel Arraes, há mais de 20 anos residindo em Paris (onde é uma espécie de embaixadora do cinema brasileiro) comentava conosco, durante o FestRio - como colega do júri de curta-metragem. - "Acho 'O Cinema Falado' um filme-testamento. Um depoimento de Caetano que nele colocou tudo que pensa sobre arte, a vida, as coisas. Pensa e indaga!" Um filho de Violeta Geirneseau, inclusive aparece no filme, logo numa das primeiras seqüências, citando o jornalista Matinas Suzuki Jr., da "Folha", como exemplo de inteligência na imprensa. O próprio Matinas - que cobriu o FestRio - levou um choque: desconhecia o fato de ser citado no filme e explicou a "homenagem" porque há algum tempo havia oferecido a Caetano um (raro) livro contendo a correspondência de Nietzche ao seu amigo Peter Gast. Mas Matinas foi um dos defensores do filme, ao qual deu a nota máxima no "Conselho B", do "Jornal do Brasil" (do qual também participamos). Da primeira a última seqüência, "O Cinema Falado" é um filme pessoal. Realizado às próprias custas (só na finalização a Embrafilme entrou com Cz$ 1 milhão), Caetano nega que seja um filme feito em cima de Jean Luc Godard (cineasta que nos anos 60 usou e abusou do blá-blá em seus filmes herméticos e política-culturalmente pretensiosos). - "Godard entra na base, mas não diretamente no filme". Com relação à chatice, ele se defendeu dizendo: - "Você já leu 'Ulisses' de James Joyce? Não é chato? Mas é genial, não? Quando pensei o filme, pensei: vai ser chato. Mas não resultou chato. O que cria um outro problema. Eu planejei o filme para ser mesmo o que as pessoas acham que seja chato". Caetano, disse mais, o que talvez ajude a muitos entenderem melhor sua proposta: - "É um filme racionalista, reflexivo. Não é um filme caótico. É cheio de reflexões. Eu não faria esse filme nos anos 60. Eu teria vergonha de fazer um filme com tanta racionalidade nos anos 60. Os anos 60 tiveram um acúmulo de rebeliões. As pessoas quiseram mudar o mundo, mudar o modo de comer, de fazer amor, alterar as relações afetivas, o casamento, tudo. Queriam ser anticonvencionais. Depois se retraíram. Isso foi preciso. Mas isso não é uma característica só dos anos 60. Os anos 20 não são chamados até hoje como os anos-loucos? Mas eu não penso em termos de décadas. E também não sou convencional. xxx "O Cinema Falado" é definido como "um filme de ensaios". E, há separações com títulos - cinema, música, artes plásticas. Começa com uma festa na casa de Caetano - cinematograficamente a filmagem é mais amadora do que o mais familiar dos super-8, mas que já traz diálogos imensos (especialmente com o poeta Antônio Cícero, irmão da cantora Marina), e uma Elza Soares surpreendente cantando "Língua". A segunda seqüência é a mais longa e chata: o ator Hamilton Vaz Pereira recita no interior de um apartamento, na Barra, um longo texto de João Guimarães Rosa, enquanto na televisão há imagens da minissérie "Grandes Sertões Veredas". Caetano tentou justificar: "De repente o cara está falando das amplidões do sertão no canto de um quarto de apartamento, num contexto totalmente urbano. Só este fato está carregado de informações". Logo depois, outra seqüência igualmente sacal: o professor de alemão Paulo César Souza, seu amigo, declama durante 15 minutos, ao som de Anton Schoenberg (1874-1951) um texto de Thomas Mann (em alemão, com legenda em português) sobre a beleza, a fidelidade no casamento heterossexual e a ausência de compromissos nas relações homossexuais. Há citações em inglês e francês, também. Aliás, o que não falta são citações. Dos brasileiros Guimarães Rosa ou João Cabral a Nietzche, Heidegger, Gertrude Stein, Mann, Hegel, Sartre, Kierkgaard, Simone de Beauvoir. Os personagens discutem Picasso e Matisse, falam de cinema brasileiro - especialmente Julinho Bressane e Rogério Sgarnzela, vanguardistas e amigos de Caetano - bem como de Godard, Fellini, Hitchcook e especialmente Wim Wenders. Dedé Veloso, ex-mulher de Caetano e Felipe Murray, aliás, protagonizam a mais pretensiosa (e chata) seqüência, ditando regras sobre cinema e minimizando o cinema de Wenders. Por estas e outras, o filme irrita e faz os menos tolerantes deixar a sala. Mas e o músico Caetano? Onde fica? Ele aparece numa cena - a mais bela, visualmente: defronte a catedral de Santo Amaro da Purificação, a noite, falando com um amigo de seus tempos de adolescente, lembrando "Il Vitelloni" (Os Boas Vidas, 53), e, assobiando o tema de Nino Rotta. Sua mãe, dona Canô, emocionante, canta afinadíssimo "Último Desejo" (Noel Rosa/Vadico) e seu irmão, Rodrigo, ao som de "Águas de Março" (Jobim), na voz de João Gilberto, aparece dançando de uma forma espontânea. Regina Casé está ótima em duas seqüências: uma, com um texto sério, emoldurado por imagens de favelas do Rio, ao som de Billie Holiday. Noutro, imitando Fidel Castro na entrevista a Robert D'Ávilla ("Conecção Internacional"), no momento mais divertido. Há quem vá ver o filme, só por este momento. Chato, sim. Mas também inteligente, explosivo e pessoal - fazem de "O Cinema Falado" um filme para ser visto e discutido. Principalmente discutido, que é o que Caetano quer. Pena que o espaço acabou...
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
2
22/03/1987

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