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Carmem, a princesa etíope da MPB

Não foi sem motivos que Carmem Costa (Carmelita Madriaga Trajano de Moraes, Rio de Janeiro, 5 de janeiro de 1920) fez questão de vir a Curitiba para buscar o apoio oficial em sua nova cruzada, iniciada ainda em fins de 1989, no sentido de ser a primeira artista a merecer o tombamento em vida. Mais do que uma merecida homenagem a esta excelente cantora que se constitui já na primeira efeméride artística do ano - os seus 70 muito bem vividos anos - a proposta de Carmem é, de certa forma, um alerta para que se dê maior atenção a artistas populares da maior dimensão mas, injustamente, esquecidos pelo público e, especialmente, pela mídia eletrônica. Há quantos anos que Carmem não merece um programa de televisão? Quais as rádios que ainda divulgam seus discos? Quando é que ela fez a última gravação? Carmem Costa tem muito para gostar de Curitiba. Quando ainda era uma garotinha ingênua e iniciando-se nos caminhos artísticos, a primeira vez que saiu do Rio de Janeiro, junto com seu primeiro companheiro musical, o compositor e cantor Henricão (Henrique Felipe da Costa que conheceu em 1937, tendo inclusive o batizado artisticamente) foi para vir a Curitiba, fazer uma temporada no Cassino Ahu. "Fazia tanto frio que eu não conseguia nem sair do hotel" nos contaria, há mais de 15 anos, num depoimento que inaugurou uma série de registros de personalidades da MPB que fizemos nestes últimos anos. Em 1972, na primeira vez em que foi formada uma comissão de nomes da maior expressão de artistas vindos de fora para julgar o desfile das Escolas de Samba. Carmem veio a Curitiba e por ter dado uma nota justa, desagradou ao mestre Maé da Cuíca, chefe da bateria Colorado - que disse cobras & lagartos da cantora. Mas Carmem estava certa e o júri a acompanhou em seu voto. Foi naquela ocasião, em Curitiba que Carmem conheceu o jornalista Antônio Chrisostomo (1945-1988), então produtor da Rádio Jornal do Brasil que a ouvindo, numa reunião informal, cantar benditos hinos e ladainhas que aprendeu ainda criança, no interior do Rio de Janeiro, decidiu produzir um espetáculo único. Assim é que um ano depois, 21 de maio de 1973, a idéia nascida exatamente no antigo (e hoje inexistente) bar do Guaíra Palace Hotel, ganhou forma, já com realização teórica do jornalista Arthur Laranjeira: no Outeiro da Glória, um espetáculo emocionante, no qual acompanhada por músicos do nível de Paulo Moura. Wagner Tiso, Raul Mascarenhas, Mauro Senise, Laércio de Freitas e Chico Batera. Carmem, toda de branco, emocionou um público especial ao mostrar um programa formado por canções religiosas, de domínio público (só em 1983, dez anos depois numa edição da Alvorada/Continental, foi editado em elepê daquele momento único, num disco hoje fora de catálogo). Ao longo destes últimos 16 anos, Carmem Costa voltou muitas vezes a Curitiba. Aqui encontrou em Oraci Gemba a sensibilidade para valorizar o seu trabalho, dirigindo-a, inclusive, num espetáculo que fez carreira no Teatro Nelson Rodrigues (BNG, Rio de Janeiro) e em várias apresentações locais. Cantou em diversas cidades, fez amigos, participou de projetos diversos, inclusive foi uma das cantoras na missa-réquiem celebrada no 7º dia da morte de Vinícius de Moraes em julho de 1980. Agora, Carmem, 70 anos de vida, emoção e música, volta a Curitiba. O secretário René Dotti encampa sua cruzada pelo tombamento artístico de pessoas de talento & criação. Gemba, 52 anos, há mais de 5 afastado dos palcos, anima-se a retornar a dirigi-la num novo espetáculo. A Carmem Costa, inesquecível intérprete de tantos sucessos - como "Jarro da Saudade", de Mirabeau (outra de suas paixões musicais e pessoais): da versão "Está Chegando a Hora" que Henricão e Rubens Campos fizeram em 1942 da valsa mexicana "Cielito Lindo"; "Carmelito" (versão de Henricão do Tango "Caminito") e "Chamego" (Luiz Gonzaga e Miguel Lima), ambas lançadas em 1943, não pode - e nem deve ser esquecida. Alta, uma beleza negra que levou a Ricardo Cravo Albin a apresentá-la no primeiro show que fez no Paiol, há 18 anos, como "uma princesa etíope". Carmem foi musa de Henricão e Mirabeau - compositores e intérpretes, mas em novembro de 1945 casaria com um americano (Hans van Koehler), com quem viajaria para os Estados Unidos. Lá, em 1947, apresentou-se no teatro Triboro, em Nova Iorque e, mais tarde, esteve em Caracas, Venezuela, Bogotá, Colômbia, numa época em que poucos eram os cantores brasileiros a fazerem sucesso no Exterior. De volta ao Brasil faria, em 1952, um grande sucesso no Carnaval, "Cachaça não é Água", cuja autoria (atribuída a Mirabeau, Héber Lobato e Lúcio de Castro) foi contestada pelo jornalista Marinosio Filho, de Londrina, que, afinal conseguiu seus direitos autorais. Em 1957, outro sucesso carnavalesco - "Jarro da Saudade": da polêmica entre Mirabeau e Ataulfo Alves (1909-1969) - resultaram algumas preciosidades como "Eu Sou a Outra" (1953), "Quase" (54) e "Obsessão" (1956). Popularíssima nos anos 50, Carmem era requisitada para aparecer nos filmusicais da época: "Carnaval em Marte", de Watson Macedo (55), "Depois eu Conto", de José Carlos Burla (56) e "Vou te Contá", de Alfredo Palacios 958), entre outros. Em 1958 voltou a residir nos EUA e longe do movimento da Bossa Nova, surpreendeu-se ao se chamada para participar do histórico concerto do Carnegie Hall, em novembro de 1962. "Meio sem jeito, fui com o José Paulo - violonista que me acompanhava na época - e coloquei "Está Chegando a Hora" no meio daquela música diferente que Carlos Lyra, Sérgio Ricardo, Oscar Castro Neves e outros diziam...", nos contaria Carmem naquele depoimento em 1973. De volta ao Brasil, Carmem foi valorizada por Ricardo Cravo Albim, ex-diretor do MIS, animador cultural: no espetáculo "Se Você Jurar", ao lado de Ismael Silva (1905-1908), teve sua estréia nacional no Teatro do Paiol, às vésperas do Carnaval de 1972. Carmem impressionava pela sua vitalidade e energia. Depois vieram o recital no Outeiro da Glória, apresentações em outras cidades, o lp "Trinta Anos Depois" (RCA), reedições de seus antigos sucessos pela Copacabana e algumas gravações avulsas - inclusive um irônico compacto simples, com uma composição da própria Carmem sintomaticamente intitulava "Criando Cobras". Carmem, venerável Dama da MPB, princesa etíope do samba, já é um patrimônio musical. Nem precisa decreto para tanto! LEGENDA FOTO - Uma faceta mística da cantora. Ladainhas, réquiens e orações, os godspell brasileiros.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Nenhum
7
11/02/1990

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