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Aramis

Arte de saber quem toca o que no jazz

Corre a lenda nos meios jazzísticos de que um dia o crítico e pesquisador José Domingos Raffaeli, 60 anos, foi chamado por um executivo de uma gravadora que lhe entregou algumas fitas, recebidas do Exterior, para que identificasse do que se tratava - para uma possível edição. Raffaeli, carioca, ligado ao jazz desde a sua infância e que há 20 anos escreve no "Jornal do Brasil", levou o material para casa, e, com base apenas no material gravado, identificou as músicas, os autores, os intérpretes - e até a época presumível das gravações e detalhes dos side-man (músicos que acompanham os grandes nomes nas gravações). Não é sem razão que Raffaeli é considerado hoje um dos homens que melhor conhecem jazz no Brasil - e portanto, seu nome está agendado para ser o primeiro dos palestristas convidados pelo Blue Note Jazz Club, dentro de um ciclo informativo. A terceira edição do Free Jazz, encerrada na madrugada do último domingo, 13, em São Paulo, fez com que não só Raffaeli - que foi um dos integrantes da equipe do "JB", que deu a esplêndida cobertura no Rio de Janeiro, mas que outros jornalistas, interessados e estudiosos de jazz mostrassem também conhecimento nesta matéria. Dentro da preocupação dos grandes jornais - como a "Folha de São Paulo", "O Estadão", "Jornal da Tarde", etc., em não apenas publicar entrevistas ou fofocas de bastidores, mas dar aos leitores uma análise crítica e didática sobre cada uma das apresentações, aconteceu uma salutar concorrência de informação. Profissionais de gabarito, ouvidos atentos, caderneta de anotações às mãos, acompanhavam minuto a minuto os sets jazzísticos, buscando identificar os nomes dos temas apresentados, seus autores, estabelecendo comparações e buscando mesmo "approachs" capazes de enriquecer suas matérias. Em alguns casos - como no magnífico concerto da Gil Evans Orchestra - o desafio de identificar os títulos das músicas apresentadas era maior: alguns temas nem sequer foram batizados, como a livre improvisação, instrumental (no pandeiro) e vocal de Airto Moreira, que, em sua extrema criatividade, desenvolve diferentes "scats" a cada apresentação. Também Delmar Brown, nos teclados de um moderno sintetizador e o guitarrista Hiran Bullock, mostraram-se bons vocalistas, mas com temas próprios e não identificados. Aliás, Evans, 75 anos, como fazem os grandes regentes de big-band, comunica-se por gestos com seu principal assistente, o pistonista Lewis Soloff, que indica o número da música a ser executada - dentre o "book" que constitui o repertório previamente delineado. Sarah Vaughan, 62 anos, estrela maior deste Free Jazz, não fez em São Paulo aquilo que seria de se esperar: embora com um repertório imenso, praticamente repetiu nas duas noites o mesmo programa. Nem por isto, deixou de ser genial. Cantou 17 canções que freqüentam o mais clássico dos repertórios - do indispensável "Summertime" (Georges / Ira Gershwim) a "Send in the Clows" (Stephen Sondheim) e chegou a tocar piano ("Pour Elise", brincando) e, quando esquecia uma parte de alguma letra, agradava ainda mais com seu "scat" - no que é mestre. O repertório de uma star como Sarah Vaughan é amplo, mas para o público há sempre as preferências dos temas mais conhecidos. Por exemplo, ainda nesta temporada, a CBS colocou dois de seus elepês na praça - "Summertime", na série "I Love Jazz" e o recentíssimo "Brazilian Romance". Em "Summertime", acompanhada por uma orquestra da qual faziam parte músicos como Miles Davis e Tony Scott (clarinete), em registros feitos há 37 anos, em Nova Iorque, "Sassy" cantava momentos como "Ain't Misbehavin" (Razaf / Walter / Brooks) ou "It Might as Well Be of Ring" (Hammerstein). Em "Brazilian Romance", terceiro elepê que faz com músicas de autores brasileiros, produção de Sérgio Mendes, com arranjos de Dori Caymmi - autor também de cinco das faixas ali incluídas - Sarah mostra estar em plena forma. Surpreendentemente, porém, no Rio de Janeiro, ela criticou o disco - razão pela qual Dori e Milton Nascimento (que no disco divide os vocais de "Nada Será como Antes" não subiram ao palco do Hotel Nacional, conforme estava previsto. Só mesmo uma cantora do prestígio de Sarah poderia renegar um disco praticamente no seu lançamento, mas como aqui registramos ontem, fica a questão - para a qual ninguém nos deu resposta conveniente - porque concordou com que uma gravação que não lhe teria satisfeito artisticamente, fosse para as lojas? xxx O espaço que o jazz ganhou na imprensa este mês, a repercussão do Free Jazz - e a consolidação deste evento dentro de um calendário artístico, trazem muitos resultados paralelos. Coincidentemente, este ano, os esforços do engenheiro Guy de Manoel, dono da Sigma/Dataserv, em implantar um clube de jazz em Curitiba - após ter bancado a formação do Sigma Jazz (no início, veículo publicitário de sua empresa, agora ganhando vida própria), parece que caminham para se tornarem definitivos. Pelo menos, entusiasmo não falta - e o jazz deixa de ser aquele gênero elitista, reservado a uma minoria para chegar a faixas mais amplas. Basta que o ouvinte tenha sensibilidade e bom gosto.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
18/09/1987

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