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Aramis

Antropofagia da poesia no banquete dos miseráveis

Júlio César Lobo, 30 anos, editor do caderno de cultura de "A Tarde", em Salvador, crítico literário e conhecedor profundo da obra de Leminski, exercendo também a crítica de cinema, foi o jornalista que mais profundamente absorveu "Cine Hai-Kai", em sua primeira projeção pública. Sabendo "ler e ver" nas imagens do filme de Pedro Anisio uma dimensão poética-política, Lobo produziu um texto que, por sua importância, aqui transcrevemos. "Num dia qualquer do ano de 1989, na cidade de Curitiba, um homem de aproximadamente 45 anos, branco com traços ligeiramente orientais e trajado de forma um pouco extravagante, anda apressado por várias ruas, fugindo à perseguição de um grupo de mendigos. Ele porta uma maleta. Finalmente acuado, o homem cede o cobiçado objeto. Maleta aberta, revela-se o conteúdo: livros, livros, livros, destacando um grosso volume da atual Constituição do Brasil. Loucos de fome, os mendigos passam a devorá-la avidamente, página por página. O homem é interpretado pelo poeta, romancista, professor de História, faixa preta de Karatê, tradutor e crítico literário Paulo Leminski, lamentavelmente falecido no meio do ano passado, vítima de uma cirrose hepática, acirrada pelo consumo diário de três litros de conhaque. Os mendigos são os próprios. A rigor, o homem não é interpretado por Paulo Leminski. O homem é Paulo Leminski e essa identificação dá-se pelos vários textos - lidos em off - de PL (sobre Matsuo Bashô e Jesus Cristo, retirados dos seus livros publicados na coleção "Encanto Radical", da Editora Brasiliense) e sobre PL, de autorias de Haroldo de Campos e Alice Ruiz. "Cine Hai-Kai", curta-metragem (5 minutos) de Pedro Anisio, é uma metáfora sobre a fome e sobre a vida do poeta. Ou sobre a fome do poeta e a vida dos mendigos. Ou sobre a fome, o poeta e os mendigos. Ou sobre a mendicância da poesia num país de iletrados e a fome dos descamisados num país de governantes canalhas. "Cine Hai-Kai" é um filme-poema, que encontra na poesia o seu roteiro. "Aqui, os poetas estrelam", diz o cineasta Pedro Anisio. Não é à-toa que, entre outros livros da área jurídica que recheiam a mala do poeta, destaque-se o da Constituição e que seja este avidamente devorado pelos mendigos. Afinal, num país como o Brasil, em que todas as constituições, no estabelecimento do salário mínimo, colocam o seu valor como o necessário para um cidadão sustentar uma família, ter uma moradia, pagar transportes, proporcionar educação, enfim ter uma vida digna e, quando a realidade tem sempre demonstrado como as leis e a realidade no Brasil não andam juntas, devorar uma Constituição parece a saída mais lógica, para não dizer a mais moral, em um país tão imoral. Há algo mais imoral, senhores, do que a fome? Diferentemente dos que nos contam os relatos antropológicos e mitológicos - quando a devoração do inimigo significa a incorporação mágica dos seus atributos - em "Cine Hai-Kai", a devoração não chega a ser antropofágica. Aqui, come-se o que deve ser extinto. Digere-se a imoralidade da injustiça social. Assim como não é à-toa que a Constituição do Brasil seja o livro mais avidamente devorado, também, não é à-toa que seja um poeta - o poeta Paulo Leminski - a trazer o papo da fome para este festival. Mais uma vez, como já disse o criticado Ezra Pound, "os artistas são as antenas da raça". Ou como observaram Gilberto Gil e Herbert Viana, em um dos melhores discos do grupo Paralamas do Sucesso, que, aqui, cito-os de memória e não literalmente, é uma pena que quando a sereia chega na praia, o sonho do poeta torne-se pedaços de carne na boca dos esfomeados. Viva "Cine Hai-Kai"! Pão e circo para todos!
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
24
19/10/1990

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