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Aramis

Uma peça que vale a viagem a São Paulo

Marcelo Marchioro retornou a São Paulo. Depois de algumas semanas trancado em seu apartamento na Rua Alberto Bolliger concluiu traduções de dois ou três textos americanos e estruturou um show para Paulo Goulart fazer uma montagem na linha one-man-show. Em São Paulo, Marcelo tem várias perspectivas de trabalho, inclusive uma terceira remontagem de sua última peça. "Do Outro Lado da Paixão"- que foi a peça mais importante encenada em Curitiba no ano passado e, na capital paulista, teve uma elogiada montagem, com Tonica (Antonia Eliana Chagas), dublê de atriz e jornalista (ex-O Estado do Paraná, há 2 anos na equipe da revista "Afinal") no papel central. xxx Em termos profissionais, Marchioro, 34 anos, ex-diretor de arte e programação da Fundação Teatro Guaíra, não tem do que se queixar; já fez quatro importantes trabalhos em São Paulo. Um deles foi a assistência de Antônio Abujamra em "À Margem da Vida" (Teatro Paiol, quarta-feira a domingo), que desde sua estréia (14/1/88) vem tendo casas lotadas todas as noites. Nos dois últimos fins-de-semana, não havia um lugar sequer - e a temporada deve prosseguir por muitos meses. O teatro pertence a Paulo Goulart/Nicete Bruno, a peça era um antigo projeto do casal, a crítica tem sido favorável e, o que é especial, público não falta. xxx Trata-se, realmente, de um belo espetáculo. Daquelas montagens que dá prazer ao público cansado de tolos experimentalismos e encenações pseudamente vanguardistas. Primeiro grande sucesso de Tennessee Williams (Columbus, Mississipi, 26/3/1911 - Nova Iorque, 25/2/1983), "The Glass Menagerie" estreou em 1944. E nestas quatro décadas e meia, a trágica, divertida e extremamente humana Amanda Wingfield, personagem central, tem sido vivida pelas maiores damas do teatro mundial. Em torno de Amanda Wingfield e seus dois filhos - a solteirona e aleijada Laura e o jovem Tom, se desenvolve o drama de "À Margem da Vida", humano e denso. Uma família americana nos anos 30, vivendo modestamente: o pai - cuja presença sente-se na fotografia na sala de jantar -, abandonou o lar há muitos anos. O filho e narrador, Tom, que teve de abdicar projetos maiores para, trabalhando numa loja de calçados, garantir o sustento da mãe e irmã - esta uma moça tímida, solitária e frustrada -, que a mãe, Amanda, deseja ver casada de qualquer maneira. O jantar em que Tom convida um amigo, Jim, - possível "candidato" ao casamento, desencadeia todo um clima que vai do lírico ao dramático. "The Glass Menagerie" tem merecido inúmeras versões - amadoras e profissionais. Seu clima intimista, o fato de dar aos intérpretes oportunidades para desenvolverem ao máximo os personagens, um clima de nostalgia e ternura - a fragilidade das emoções, como os próprios bichinhos de cristal (do título original), são condicionantes que fazem desta peça um espetáculo sempre fascinante. Abujamra, um dos profissionais mais competentes do teatro brasileiro, partiu nesta montagem de uma leitura em que sem forçar demasiadamente o riso, obtém, entretanto, um clima leve e descontraído -, mas que não dispensa o lado dramático. Como tão bem acentuou o crítico Décio de Almeida Prado, Tennessee joga em sua peça com tempos superpostos. No presente, contemporaneamente a nós, da platéia, está o narrador, Tom, que evoca as figuras um tanto longínquas da mãe e da irmã. Quanto a estas duas, embora presentificadas pelo palco, onde tudo parece estar acontecendo naquele momento, apresentam-se, a Tom e ao público como recordações poetizadas pela memória, com a aura das pessoas e dos fatos que não mais retornarão. O escritor atinge em cheio a meta que sempre teve em mente ao escrever, conforme a definiu nas suas "Memórias": "Essa meta é apenas como capturar a qualidade constantemente evanescentes da existência". Tudo na vida humana é patético, mesmo ridículo (e nesse ponto drama e comédia se entrecruzam em "À margem da Vida"), porque nada se fixa, nada adquire realidade definitiva. Da abertura da peça, com Tom (Paulo Goulart Filho), na sacada, se apresentando - e apresentando a sua família -, ao final, no mesmo local, algum tempo depois. "À Margem da Vida" tem a empatia, a emoção, a sinceridade dos grandes textos. A trilha sonora, na qual inteligentemente Paulo Herculano soube usar, economicamente, a bela música dos anos 30 - especialmente o "Embreaceble Me", como tema de Laura, o cenário de Felipa Crescenti, os figurinos de Fernando Abujamra e a criativa iluminação de Mário Martini - contribuem para um resultado perfeito. Entretanto, é uma peça para uma grande atriz. E Nicete Bruno, 56 anos, não poderia escolher um texto mais adequado para comemorar seus 40 anos de vida profissional - com 46 peças a partir de "A Filha de Iório" (1947), 14 telenovelas e três filmes (por que será que os cineastas não lembraram-se mais de sua incrível presença?) - os quase esquecidos "Querida Suzana", "Esquina da Ilusão" e "A Marcha". Como Amanda Winfgfild, Nicete compõe uma fascinante mãe: dominadora, irascível, avoada, maluca, divertida, simpática, amiga - enfim, com todas as virtudes e defeitos. Sua obsessão em ver a filha, Laura, casada, passa ao espectador a solidão da personagem - e a forma leve com que Abujamra dirigiu a peça faz com que não haja um momento de falha ou chatice, muito pelo contrário. Marcelo Marchioro, foi além da assistência: em muitos momentos sente-se sua criatividade, como a inteligente e divertida utilização da voz gravada de Nicete para a seqüência em que prepara o jantar - num ritmo quase keystone cinematográfico. Uma produção extremamente familiar: Paulo Goulart é o produtor executivo e do elenco; apenas Antoine Rovis não é da família: Barbara Bruno está ótima, equilibradíssima, no difícil personagem de Laura, que congela seus sonhos e paixões numa vida cinzenta e sem perspectivas; Paulinho, curitibano (nasceu a 13 de março de 1965, quando Paulo e Nicete residiam em Curitiba, participando da fase de implantação do Teatro de Comédia do Paraná) está bem como o narrador Tom. Um papel difícil, mas que ele consegue equilibrar. Rovis, um ator ainda pouco conhecido, também compõe o personagem Jim - que chegando para um jantar estabelece relações do passado. xxx Uma produção com afinidades curitibanas - além de Marcelo e Paulinho, curitibanos, Paulo e Nicete nunca esqueceram os anos que aqui passaram, "À Margem da Vida" não tem, a médio prazo, possibilidades de vir a ser apresentado no Teatro Guaíra. Entretanto, para quem for a São Paulo e aprecia o bom teatro, dar uma passada no Paiol - que lá ao contrário do daqui, funciona ativamente -, é o melhor programa. LEGENDA FOTO - Nicete Bruno comemora seus 40 anos de teatro com uma grande peça: "À Margem da Vida". A produção é do marido Paulo Goulart e dois curitibanos estão no projeto: Paulinho, filho do casal e Marcelo Marchioro, assistente de direção.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
22/03/1988

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