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Aramis

Sigma Jazz Group, o calor e o frio

"Prezada dona Broca, este é um aviso prévio. Assinado Eduardo Guy de Manuel". Este bilhete foi deixado, assim subscritado, ao dentista José Carlos Misceli que tornou-se popular em Curitiba por deliciar os passantes da Boca Maldita com um solitário som de jazz vindo das alturas do prédio onde está seu consultório. O signatário é presidente da Sigma/Dataserv. Estava nascendo, através do bem-humorado recado, o Sigma Jazz Group. O conjunto tem um mês: nasceu em abril e o contrato comercial vai até setembro. Mas pela disposição do seu mecenas em aposentar a "dona broca" de um dos músicos e diante das inúmeras propostas que estão surgindo, é bem possível que o grupo ganhe vida própria. "O empurrão foi dado", assegura, confiante, Roseana Anck França, assessora de marketing da empresa de informática do Paraná. Nasceu o Sigma Jazz Group de uma iniciativa inédita: a de uma empresa escolher os músicos e reuni-los sob sua sigla. Geralmente para um evento publicitário, o mais comum é o de se contratar um grupo já existente. Outra novidade nesta área de publicidade foi a de se aliar a informática (cérebro) à emoção (coração). "Não estamos distantes do que seria projetado em "1984" (livro de ficção escrito em 1974). Sem coração conseguiremos alguma coisa até o final deste século?", conjectura Roseana, repetindo um pensamento de Eduardo Guy, lembrando que faltam apenas 13 anos para o ano 2.000. O que há de comum entre o jazz e o computador? - Se o homem não tivesse vontade de criar não teria criado o computador e o jazz é a criação, o improviso. Responde Misceli. - As pessoas que lidam com computador têm quase a sensibilidade de um músico, garante o guitarrista Reamir Scarante. Nene, baterista do Grupo Pau Brasil, fez o tema "Scarante Sete Guitarras". E Scarante respondeu com "Ao Rei Alcino", tema homenageando o baterista que odeia o nome de batismo: Realismo. Esta historinha é só situar de leve Scarante, no cenário musical. Nascido em Porto Amazonas, formou em Curitiba um trio (ele, Joaquinzão e Vitinho) que tocava na "Casa da Frida" (zona nas Mercês já inexistente) e na "Casa Amarela", no tal baixo meretrício de Paranaguá. Em São Paulo, Scarante morou na pensão Adriana com 45 músicos, entre eles Milton Nascimento. Mas Scarante, antes do trio, foi faxineiro do El Galeto, um restaurante que existia na Praça Osório. Ao se mandar para São Paulo, entre 57 e 58, era apenas curioso da guitarra, tendo por ídolo Barney Kassel. De 65 para cá vive só de música. Aportou em Curitiba pelas mãos do pianista Varela sabendo que o Sigma Jazz Group estava por nascer e "daqui não saio mais". As músicas que ele já fez dariam para completar um lp. Ou muito mais. É dele o tema de abertura do conjunto: "Inteligência Natural". Fez agora "Zoca", tema que homenageia o guitarrista do Gonzaguinha que está nos Estados Unidos. O batera do Sigma Jazz é Maurici Ramos. Na música há 26 anos, a formação do conjunto "é o que sempre sonhei: poder fazer apenas o jazz, o nosso som". Na noite tem-se que agradar os mais variados desejos do freguês, não é mesmo? (Virou até piada na boemia se pedir "aquela"). Pois Maurici pode agora deliciar-se apenas com jazz. "Melhor que isso pode estragar", diz. Ele é outra das feras do grupo. Entre 16 bateristas tirou primeiro lugar para o Disney on Parade, empresa da Disneylândia. Já tocou até em Caracas. E por 10 anos, tocou com Fernando Montanari e ultimamente com José Antônio Boldrini. Boldrini - santista criado em Paranaguá - tinha tudo para ser roqueiro. Tem 33 anos - é o mais jovem da turma. E caiu na música ouvindo Beatles. Autodidata como todos do Sigma Jazz, Boldrini destaca-se no contrabaixo nos bares da cidade. Refugiou-se no jazz "porque ao se enfiar na música a tendência é ir-se burilando até chegar no denominador comum, que para mim é o jazz". Mas o pai, que tocava violão, gostava do gênero. E Boldrini conviveu com um som livre e espontâneo já na infância. Fernando Montanari chega agora no pedaço. Acaba de fazer um som no bar do Hotel Slaviero, sobe ao mezzanino e é recepcionado por Misceli: "Este aí tocava na gafieira "Farinha Seca", em União da Vitória. Foi lá, em rádios, que ele começou na música". Fernando confirma. E começa a sessão saudade. Todos começam a lembrar de bons tempos, quando Curitiba tinha 14 boates no centro, quando Airto Moreira ia tocar na zona de Guarapuava. Anos 60 recorda o pianista, foi o auge da vida noturna: Luigi... Gracefull... - Mas qual o músico hoje que tem condição depois do trabalho em esticar para um jantar às 4 da madrugada e ainda pagar um carro de praça? (Esta turma regava chupeta na cerveja. E agora está difícil acompanhá-los no uísque. Mas, garçom, mais um dose...) Fernando Montanari é curitibano da Avenida Água Verde com a Brigadeiro Franco. Dos programas de calouros nas rádios de União da Vitória, retornou a Curitiba em 1961. Sua especialidade até então era o acordeon. Em 62 mudou para o piano: "Uma opção por causa da noite. O acordeon passou a dar lugar para o órgão (auge de Waldir Azevedo, pois não?) e o acordeon ficou restrito para a música regionalista". Em 62, no piano dentro da noite ganhava mais que a mãe normalista: 200 mil réis. Como você aprendeu tocar piano? - Se danando a gente aprende. No entanto, desde 1975 não se dedicava ao jazz por falta de público (a mesma história do "toca aquela"). E Fernando teve que conviver com este trauma musical. "Quem vive da música - afirma - não pode ficar 12 anos sem jazz". Hoje, aliando o emocional com o racional dentro do projeto Sigam/Dataserv, ele se diz renascido das cinzas. - O pistão é o instrumento mais sexy de uma banda. É Scarante assim apresentando Misceli, 46 anos - um ano mais novo que Montanari. "Pistão é um instrumento viril", completa Misceli que não se faz de rogado. Todos pensam que Misceli é um dentista que incursiona pelo jazz apenas no entardecer de Curitiba. Nada disso: ele é registrado na Ordem dos Músicos sob o número 16, em 1961. Até 1960 tocava em Londrina com o "Continental", grupo que reunia o carteiro Oswaldo e o guitarrista Zardo, que depois foi ser reitor na Universidade de Mato Grosso do Sul. Hoje, é até capaz mesmo de aposentar a "dona broca": - A música é uma ilusão que sempre transtorna, então eu acho que após tantos anos de sonho quero pôr o pé no chão. Quero tocar jazz enquanto puder tocar jazz. Para Misceli, o sigma Jazz Group, que receba salário mensal da empresa além do cachê e que nunca se prestará para animar baile pois a proposta é de audição da boa música, "é um vínculo entre o calor e o frio". Afinal, se o computador registra a memória a arte é o registro da criatividade humana. (A saideira, garçom). LEGENDA FOTO 1 - Os músicos selecionados por um sonho em comum: tocar jazz. LEGENDA FOTO 2 - Maurici. LEGENDA FOTO 3 - Boldrini. LEGENDA FOTO 4 - Montanari. LEGENDA FOTO 5 - Scarante. LEGENDA FOTO 6 - Misceli. LEGENDA FOTO 7 - Eduardo Guy.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Nenhum
5
24/05/1987

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