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Aramis

Em câmera lenta, o grito do amor ao teatro parado no ar

É um hino de amor ao teatro. Um hino lancinante, profundo, absolutamente sem concessões digestivas mas que se acrescenta a outros (bons) momentos em que o teatro se volta ao redor de seu mundo e magia. Assim é "Eu, Feuerbach" (auditório Bento Munhoz da Rocha Neto, até o dia 2 de fevereiro, 21h), uma montagem tão vigorosa quanto (pode ser) polêmica que acontece em Curitiba - e que, perdoem o chavão, abre com chave de ouro (sic) este ano teatral. Poder-se-ia classificar "Eu, Feuerbach" na mesma dimensão que foi "Araçá Azul" (1973) e "O Cinema Falado" (1986), nas mais avançadas (e para muitos, pretensiosas) propostas de Caetano Velloso. "Araçá Azul" era, assumidamente, "um disco para entendidos" - como Caetano escrevia na capa. "O "Cinema Falado" era um longo monólogo (em muitas vozes) com reflexões intelectuais. "Eu, Feuerbach" é um monólogo (em que pese mais dois intérpretes) em torno do teatro. Mas que não fica no palco! A vida, a loucura, o sucesso e as relações do poder - algumas das (múltiplas) leituras que esta encenação possibilita. Aos 35 anos, Marcelo Marchioro é atualmente o homem do teatro paranaense com maior embasamento cultural e que nos últimos três anos vem realizando uma obra coerente e corajosa na proporção em que não se deixa envolver pelas limitações comerciais de um teatro de consumo - apesar do sucesso alcançado com muitas de suas direções (atualmente, "O Olho Azul da Falecida", de Joe Orton, no Teatro do Paiol, em São Paulo, está lotando a casay todas as noites). Depois de um mergulho onírico do universo do matemático escritor inglês Lewis Carrol (Charles Ludwig Degson, 1832/1898) em "Do outro Lado da Paixão" (1987) e trabalhando na montagem de "Nenúfar", que vai revelar ao público brasileiro a obra do "merecidamente" desconhecido escritor (e músico) francês Boris Viann (1920-1959), Marcelo passou quase cinco meses trabalhando um pequeno grupo para fazer de "Eu, Feuerbach" um momento em que se pensa (e que discute) o teatro - em suas cores e matizes. xxx De princípio, a opção pelo espaço. Pode até parecer ironia que dentro de um dos maiores auditórios do Brasil, só 150 pessoas possam assistir cada encenação desta peça (cuja apresentação se dá em dias alternados, hoje, a 26; depois, dias 29 a 3). Isto porque, pela primeira vez, o espetáculo acontece no (imenso) palco do Guairão, com 150 cadeiras dispostas, em forma de arena, ao redor de um palco de 3 x 4 metros, no qual apenas uma cadeira e discretíssimos efeitos de luz fazem com que toda a ação se concentre no personagem-título. Feuerbach, um velho ator, há sete anos sem pisar no palco, chega para tentar um teste. Durante 90 minutos estabelece-se um visceral mergulho no universo de sentimentos, frustrações, emoções, oportunidades perdidas, lembranças de memórias - em confronto com a presença jovial de um "assistente de direção" - frio, branco, impassível e, propositalmente, extremamente irritante. Feuerbach, como um náufrago em busca de uma chance, é toda a entrega do ser humano - e como diz Marchioro no programa, no jogo proposto pelo autor do texto, Tankred Dorst, "por acaso, ele é um homem de teatro, lutando pela sua sobrevivência, enlouquecendo com e por ela. Poderia ser um profissional de qualquer outra área". xxx O teatro que se volta ao próprio teatro tem exemplos bem sucedidos. De propostas verde-amarelas como fizeram Gianfrancesco Guarnieri ("Um Grito Parado no Ar") ou Fauzi Arap ("Boca de Cena") a "O Exercício" do norte-americano Lewis John Carlino, passando por transposições ao cinema ("O Fiel Camareiro/The Dresser", 1985, de Peter Yates) ou mesmo chegando à loucura cênica explícita ("Equus", de Peter Schaeffer), há muitos momentos que podem lembrar a proposta que o alemão Dorst coloca neste "Eu, Feuerbach". Mas - se for o caso de citações e aproximações (a longa espera que o velho ator Feuerbach faz no palco pelo diretor Lettau) pode também ser vista como "Esperando Godot", de Samuel Becket. Durante quase duas horas de expectativa por alguém que não chega - mas de cujo poder de decisão depende o (seu) destino. Estas reflexões podem ser feitas - e ampliadas - ao longo da encenação de uma peça propositalmente huis-clos como esta encenação, que se destina a um público especial e reduzido - mas que, conseguindo capturar as intenções dos autores (texto/encenação) e estabelecer a cumplicidade com o dramático personagem deixa o teatro satisfeito. Exausto, talvez, por assistir uma peça que não pode, em absoluto, ser classificada de entretenimento no sentido lato deste termo, mas engrandecedora na proporção em que propõe a discussão de valores humanos e que buscam tocar algo mais do que a simples trama convencional. xxx Um texto como "Eu, Feuerbach" - até agora inédito nos palcos brasileiros - só poderia ter uma encenação tolerável caso fosse encarada por gente competente. A partir da própria necessidade da aproximação do público - na opção de um teatro de arena num gigantesco palco (em outras cidades, a peça terá de se adequar a pequenos espaços) torna mais assimilável toda a grandeza de sentimentos que o personagem-título coloca. E justamente está na interpretação de Feuerbach o ponto-chave. Aos 46 anos, 27 de teatro profissional, Emílio Pita, mais de 50 trabalhos em palcos paranaenses, tem agora seu momento da verdade definitiva: toda a carga dramática de um personagem complexo, profundo e extremamente humano, exigiu meses de estudo para compô-lo nos 90 minutos. Se não fosse o passado de ator que já teve boas interpretações, poderia-se até dizer que é agora, graças à competência de Marchioro, que Pita encontra a oportunidade de mostrar um talento dramático visto raras vezes em nossos palcos. Seu personagem é tão denso, numa empatia com o público - ausência de maquilagem, transpirando em mais da metade da peça, próximo ao espectador - que torna difícil, quase que eclipsando, qualquer outra atenção. É no caso, o jovem Carlos Manuel, na difícil criação do irritante assistente de direção (personagem sem nome da peça) fica, naturalmente, em outro plano - assim como a breve entrada de Marisia Bruning (Senhora Angermeier), quase num papel de composição, num raro intermezzo em que há certo toque de (tênue) humor dentro de uma estrutura dramática. xxx Em câmera lenta, desde a entrada de Feuerbach, a peça se desenvolve com movimentos muito bem marcados, no que colaborou a coreografia de Sandra Zugman, bailarina de formação clássica e que desde 1982 vem fazendo trabalhos de coreografia teatral (em "Do outro Lado da Paixão", já era responsável por um bonito trabalho). Paulinho Maia ajudou a conceber praticamente o que não existe - cenários, figurinos e adereços, pois no despojamento já uma centralização no palco - apesar de, em alguns momentos, sua ação se transferir para o lado. Num envolvimento de palco/platéia, a atriz Marisia Bruning compõe resneianas imagens da memória de Feuerbach - ao circular em vaporosos trajes, com caudas de tule - numa criação do próprio Marcelo Marchioro, com imagens das mulheres que teriam marcado a vida de Feuerbach - a mãe, a esposa e a tia. Uma concepção visual pessoal, quase um flash back onírico dentro de um texto duro e árido em sua essência - que sem distrair a atenção, complementa todo um quadro dramático. Na criação musical, uma revelação: Pascal Morrow, 24 anos, franco-canadense radicado há dois anos no Rio, violinista de jazz com (in)formação do que há de mais vanguardistas em termos sonoros, traduz em momentos diversos todo um clima sonoro - chegando a arremedos líricos nos últimos cinco minutos. xxx A abertura para muitas leituras e interpretações - e provocando diversas reações no espectador (do cansaço e irritação à empatia), "Eu, Feuerbach" é uma produção adulta, um espetáculo para ser visto - mas (e isto é importante ficar claro) pela faixa de público que sabe buscar teatro (como no cinema ou na literatura) algo mais do que um passatempo consumista. "Eu, Feuerbach" é um teatro profundo - árido em muitos momentos, difícil até. Mas como a própria vida. Se assim não fosse, aqui não estaríamos. LEGENDA FOTO - A equipe de uma montagem visceral: Emílio Pita, o diretor Marcelo, Cláudio Manuel, Marisia Bruning (coadjuvantes) e Sandra Zugman (coreografia/expressão corporal). "Eu, Feuerbach", em cartaz no Teatro Guaíra (Foto de Chico Nogueira).
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
22/01/1989
Caros, como faço para entrar em contato com a cia que fez esta montagem? Ajudem... rs

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